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Manifestantes pró-Palestina permanecem em acampamento na Universidade da Califórnia, mesmo depois de a polícia do campus ter pedido que saíssem, em Los Angeles, nos EUA (1º/5/2024) | Foto: Reuters/Mike Blake
Edição 215

O ritual woke

No Ocidente contemporâneo, há toda uma indústria política para a produção da desintegração social e do colapso da consciência moral do indivíduo

Flávio Gordon
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“Devemos fazer da geração jovem uma geração de comunistas. As crianças, como cera, são muito maleáveis e devem ser moldadas como bons comunistas. Devemos resgatar os infantes da influência nociva da vida familiar.”
(Lilina Zinoviev, precursora do ensino soviético, citada por Orlando Figes em A Tragédia de um Povo: A Revolução Russa [1891-1924])

Olhando no noticiário as imagens de manifestantes pró-Hamas detidos nos campi universitários americanos por ataques antissemitas contra colegas de origem judaica, uma característica chamou-me a atenção: a aparência andrógina de muitos desses militantes, possivelmente explicada pela adesão ideológica e estética à causa transgênero, a qual, junto com o antissemitismo, parece ser um elemento inerente à cosmovisão woke. Talvez por um vício de formação acadêmica, o antropólogo em mim logo falou mais alto, e eu não pude deixar de remeter essa androginia àquilo que autores clássicos da antropologia classificaram como ritos de passagem ou ritos de iniciação, os quais marcam uma profunda mudança no status social e na identidade pessoal do iniciado. Explico.

Em seu clássico livro Os Ritos de Passagem, de 1909, o etnólogo franco-holandês Arnold Van Gennep reuniu uma grande quantidade de material etnográfico sobre ritos iniciáticos de sociedades tribais ao redor do mundo, extraindo daí um padrão recorrente. Há, segundo Van Gennep, três grandes fases no processo ritual de passagem: os ritos de separação (nos quais o iniciando é afastado de seu grupo social originário); os ritos de margem ou de liminaridade (momento em que os iniciandos estão despidos de todas as suas identidades e papéis sociais prévios); e, por fim, os ritos de agregação (nos quais, já transformado em termos de status e personalidade, o iniciado é recebido no seio do novo grupo social).

Estudante da Universidade do Texas é libertado depois de ter sido preso por participar de protestos pró-Palestina, em Austin, no Texas, nos EUA (30/4/2024) | Foto: Reuters/Nuri Vallbona

Por suas características ritualmente dramáticas, pelas quais os iniciandos experimentam um estado anárquico e socialmente indistinto, nos quais ademais passam por situações-limite como jejum, privações sensoriais e sofrimentos físicos, a fase liminar (“betwixt and between”, como se diz em inglês) tem despertado interesse especial entre antropólogos e cientistas sociais. Inspirando-se no esquema de Van Gennep, por exemplo, o antropólogo britânico Victor Turner deu grande destaque à liminaridade, descrevendo-a assim em seu livro O Processo Ritual, de 1969:

“Os atributos de liminaridade, ou de personae [pessoas], liminares são necessariamente ambíguos, uma vez que essa condição e essas pessoas furtam-se ou escapam à rede de classificações que normalmente determinam a localização de estados e posições num espaço cultural. As entidades liminares não se situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial. Seus atributos ambíguos e indeterminados exprimem-se por uma rica variedade de símbolos, naquelas várias sociedades que ritualizam as transições sociais e culturais. Assim, a liminaridade é frequentemente comparada à morte, ao estar no útero, à invisibilidade, à escuridão, à bissexualidade, às regiões selvagens e a um eclipse do Sol ou da Lua. As entidades liminares, como os neófitos nos ritos de iniciação ou de puberdade, podem ser representadas como se nada possuíssem. Podem estar disfarçadas de monstros, usar apenas uma tira de pano como vestimenta ou aparecer simplesmente nuas, para demonstrar que, como seres liminares, não possuem ‘status’, propriedade, insígnias, roupa mundana indicativa de classe ou papel social, posição em um sistema de parentesco, em suma, nada que as possa distinguir de seus colegas neófitos ou em processo de iniciação.”

Capa do livro O Processo Ritual, de Victor W. Turner | Foto: Divulgação

No estado liminar (ou marginal), portanto, o iniciando deve se tornar uma criatura indeterminada em termos de identidade pessoal e papel social, bem como indistinta em relação aos seus pares rituais. Eis por que o simbolismo estético da androginia seja recorrente nesse tipo de ritual. Assim como o neófito tem apagados os sinais exteriores de sua posição de classe, casta, parentesco ou ofício, também a sua identidade de gênero é frequentemente obliterada, mediante o uso ritual comum de vestimentas, utensílios e espaços assexuados, em alguns casos incluindo até (de modo temporário e ritualizado) o emprego de pronomes de tratamento sexualmente neutros. Portanto, se um antropólogo de Marte chegasse hoje a um campus universitário terráqueo, talvez divisasse na estética dos militantes woke a presença da função liminar do ritual, que então serviria de fase de transição para uma nova personalidade e um novo estado. Mas qual?

Hoje, o movimento woke tem sido caracterizado por autores como James Lindsay, Jean-François Braunstein, John McWhorter, entre outros, como uma espécie de religião política ou culto secular. Não é o espaço aqui de avaliar na íntegra a pertinência dessa caracterização. Mas é evidente que, em se tratando do processo de despersonalização acima descrito para a fase liminar dos ritos de passagem, o wokeísmo assemelha-se muito a religiões e seitas políticas de outrora, as quais, em seus rituais de iniciação, também observam o mesmo esquema registrado pela antropologia no tocante aos ritos de passagem das sociedades tribais. Os neófitos das religiões políticas também passam necessariamente pelo momento de perda de identidade, indeterminação e abandono dos laços sociais anteriores, tornando-se, do ponto de vista de seus novos gurus, uma espécie de argila psicossocial, pronta para ser modelada segundo os novos valores.

Noções de plasticidade e maleabilidade são recorrentes, por exemplo, na liturgia revolucionária comunista. Disse-o ninguém menos que Ernesto Che Guevara em O Socialismo e o Homem em Cuba: “Na nossa sociedade, jogam um grande papel a juventude e o partido. A primeira é particularmente importante por ser a matéria maleável com a qual se pode construir o homem novo sem nenhuma das taras anteriores”. Essa maleabilidade é típica da liminaridade ritual, sempre presente no processo comunista de iniciação. Como, por exemplo, descreveu o historiador Rodrigo Patto Sá Motta acerca do comunismo brasileiro: “Durante o período mais intenso, tornar-se comunista era adentrar um novo universo, verdadeiramente aderir a uma cultura, à qual não faltavam rituais de iniciação e um conjunto de normas, valores e linguagem próprios”.

O que são os militantes woke pró-Palestina além de “caranguejos sem a carapaça” e “crianças extraviadas”, inseguras, familiarmente desestruturadas e predispostas a uma “rápida reconstrução baseada em um padrão de grupos inteiramente novo”?

Em relação à iniciação político-religiosa nazista, o sociólogo Karl Mannheim descreveu-a com precisão no livro Diagnóstico do Nosso Tempo, em capítulo intitulado “Estratégia do Grupo Nazista”, do qual cito:

“Hitler inventou um novo método a que se pode dar o nome de estratégia do grupo nazista. O ponto capital da estratégia psicológica de Hitler é jamais encarar o indivíduo como pessoa, mas sempre como membro de um grupo social (…) Hitler sabia instintivamente que, enquanto as pessoas se sentem abrigadas em seus próprios grupos sociais, ficam imunes à influência dele. O artifício oculto da estratégia de Hitler, por conseguinte, consiste em romper a resistência do espírito individual por meio da desorganização dos grupos aos quais esses indivíduos pertencem. Ele sabe que um homem sem laços com o grupo é como um caranguejo sem a carapaça (…) Assim, há duas fases principais na estratégia do grupo de Hitler: a decomposição dos grupos tradicionais da sociedade civilizada e uma rápida reconstrução baseada em um padrão de grupos inteiramente novo.”

Agente nazista observa a destruição de obras literárias em Berlim | Foto: Reprodução/Museu do Memorial do Holocausto dos EUA

Mannheim observa que, embora Hitler tenha introduzido adaptações particulares na técnica, ela não era especificamente nazista, tendo sido usada mais ou menos variadamente por outros projetos totalitários, em especial pelo comunismo. Continua o sociólogo húngaro:

“São diversos os métodos de que [Hitler] dispõe para lidar com a família, a Igreja, os partidos políticos e as nações. Os elementos dessa técnica ele os aprendeu com os comunistas, mas os pormenores foram por ele elaborados durante sua própria luta na selva política da Alemanha da década de 1920 (…) Nessa fase, a desmoralização e a decomposição dos grupos sociais principiam a produzir efeitos no indivíduo. E, o que é pior, em vastos números de indivíduos simultaneamente. A explicação psicológica desse fato é simplesmente a seguinte: o homem entregue a si mesmo não pode oferecer resistência. Como os vínculos com seu grupo é que lhe dão apoio, segurança e reconhecimento, para nada dizer dos valiosos laços de amizade e confiança, sua dissolução deixa-o inerme. Ele se comporta como uma criança que se extraviou ou que perdeu a pessoa amada; por isso sente-se inseguro, disposto a apegar-se a quem quer que se apresente (…) O fato é que a desintegração do grupo tende a ser seguida de um colapso da consciência moral do indivíduo.”

Saudação nazista em escola de Berlim. As crianças eram doutrinadas desde muito cedo (1934) | Foto: Wikimedia Commons

No Ocidente contemporâneo, há toda uma indústria política para a produção dessa desintegração social e desse colapso da consciência moral do indivíduo, um processo que tem atingido especialmente os jovens e os adolescentes, figuras liminares por natureza e, portanto, automaticamente suscetíveis às técnicas totalitárias de iniciação. Afinal, o que são os militantes woke pró-Palestina além de “caranguejos sem a carapaça” e “crianças extraviadas”, inseguras, familiarmente desestruturadas e predispostas a uma “rápida reconstrução baseada em um padrão de grupos inteiramente novo”? Eis que, depois da crise existencial da liminaridade, até o Hamas e o Hezbollah servem ao papel de agregadores…

Leia também “A ignorância pomposa”

6 comentários
  1. Fernando Laserra Lima
    Fernando Laserra Lima

    Texto excelente! Parabéns, Flavio.

  2. Reginaldo Corteletti
    Reginaldo Corteletti

    Seria um processo de “lavagem cerebral”? Deletar todas as informações vividas-sob a justificativa de que aprisionam os indivíduos? A liberdade estaria em uma nova ordem?

  3. MARCUS HELDER GOBETTI
    MARCUS HELDER GOBETTI

    Excelente artigo, parabéns pela matéria!!!

  4. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    A foto do início simboliza esta turma, os hipócritas mascarados.
    E, sobre os jovens em má influencia nas universidades, cabe aos pais o seu acompanhamento.

  5. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Esse pessoal que adere essa cultura woke querem é aparecer, principalmente os universitários ocidentais pra se destacar como grupo intelectual, até quem é heterossexual passa a virar homo mesmo contra a sua libido, termina formando um segmento social ajumentado, trocando o ego pelo id. Coitados

  6. Denis R.
    Denis R.

    Muto boa a matéria. Só deixaria como reflexão o fato de que, diferentemente das crianças fazendo a saudação nazista há um século, os militantes woke atuais têm na palma da mão acesso quase ilimitado a informação. Poderiam então se utilizar dela para “crescerem” e se tornarem adultos entendendo que a esta sinalização de virtude simplória e a defesa de causa as quais nem de longe compreendem tem pouquíssimo (ou nenhum) valor para si.

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