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Massacre de Boston, de 1770, afresco de Constantino Brumidi (1871), no Capitólio dos EUA | Foto: Wikimedia Commons
Edição 214

Fatos são coisas teimosas

Desinformação é combatida com mais liberdade para que a verdade exerça sua força e siga seu caminho de elucidação

Ana Paula Henkel
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O relatório da Comissão do Judiciário da Casa dos Representantes dos Estados Unidos, divulgado na semana passada pelos deputados americanos, expõe as ordens ilegais do ministro Alexandre de Moraes para derrubar e bloquear contas de usuários da rede X (antigo Twitter) sem o devido processo legal ou qualquer apoio constitucional. Ali, há ações perturbadoras por parte do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que não respeitam o processo legal ou que sequer têm o amparo de nossa Constituição.

No documento, as absurdas e inconstitucionais canetadas de Moraes criam tentáculos através de um órgão criado pelo ministro e que segue a sanha da mordaça geral a quem tem opiniões dissidentes às do consórcio Lula/STF. De acordo com as mais de 500 páginas do relatório, a agência reguladora criada dentro do TSE com o nome Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação foi acionada por Moraes e outro juiz, Marco Antônio Martin Vargas, para derrubar dezenas de perfis nas plataformas digitais. O puxadinho censor de Moraes dentro do TSE ignorou leis e chegou a ordenar o “afastamento excepcional de garantias individuais” aos usuários do Twitter — tudo em nome da “proteção do Estado de Direito”, do “combate à desinformação” e das horríveis “fake news que corroem nossa democracia”.

Marco Antônio Martin Vargas, juiz | Foto: Roberto Navarro/Alesp

Nesta semana, Alexandre de Moraes fez uma visita-surpresa ao Congresso Nacional para entregar o anteprojeto do novo Código Civil e reiterou apoio à regulamentação das redes sociais: “Na virada do século, não existiam redes sociais. Nós éramos felizes e não sabíamos. Há necessidade dessa regulamentação, do tratamento da responsabilidade, do tratamento de novas formas obrigacionais”.

Puxadinho jacobino

Em 12 de março, Moraes inaugurou mais um puxadinho jacobino — o Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia (CIEDDE), que, segundo o ministro, existe agora para proteger a vontade do eleitorado que “vem sendo atacada desde 2018 por milícias digitais que utilizam fake news e discursos de ódio para desvirtuar o mercado livre de ideias”.

Alexandre de Moraes, na Assinatura de Acordos de Cooperação Técnica com Polícia Federal, AGU e CIEDDE (3/4/2024) | Foto: Alberto Ruy/Secom/TSE

O pânico dos poderosos, não apenas no Brasil, mas no mundo, é que as redes sociais ampliaram qualquer debate e trouxeram as antigas praças públicas para esferas mais grandiosas e com a participação de todos — um verdadeiro perigo para a manutenção e o controle por parte daqueles que visam apenas a projetos pessoais de poder. As chamadas fake news, um termo apenas rebuscado para a mentira ou a inverdade, não são coisas do mundo moderno, como adoram pregar os tiranetes de plantão para que a censura seja institucionalizada no país.

Em 2017, “fake news” foi eleita a expressão do ano pelo Dicionário Collins, que a definiu como “informações falsas que são disseminadas em forma de notícias, muitas vezes de maneira sensacionalista”. Durante a corrida presidencial nos Estados Unidos em 2016, entre Hillary Clinton e Donald Trump, a maioria das pesquisas de intenção de voto divulgadas pelos jornais indicava vasta vantagem para a democrata. Trump venceu a eleição e passou a utilizar o termo “fake news” para definir o trabalho de jornalistas e analistas da imprensa, normalizando a expressão entre seus apoiadores e ao redor do mundo. No entanto, as notícias falsas surgiram muito, muito antes desse período, algumas datadas do ano 44 a.C. Nos Estados Unidos, as tais fake news fazem parte até do início da nação.

Foto: Shutterstock
‘Maldito seja, fogo!’

Em 1770, seis anos antes da Declaração da Independência, os americanos de Boston se reuniram do lado de fora de um dos prédios da coroa britânica para protestar contra os altos impostos. Liderados pelo capitão Thomas Preston, os soldados britânicos enfrentaram uma multidão de colonos que ignoravam o comando de Preston para dispersarem. A multidão, enfurecida com as ações abusivas do rei da Inglaterra, começou então a jogar bolas de neve, pedaços de paus, pedras e conchas grandes nos soldados britânicos.

Quando um dos objetos atingiu o soldado Montgomery, ele disparou sua arma depois de ter gritado aos compatriotas: “Maldito seja, fogo!”. Os testemunhos variam quanto ao que aconteceu a seguir, mas depois de outros soldados terem disparado suas armas, o resultado foi a morte de cinco pessoas. No dia seguinte, Preston e mais oito soldados foram presos e acusados de homicídio.

O Massacre de Boston passou para a história como o conflito que energizou o sentimento antibritânico e abriu o caminho para a Revolução de Independência. A indignação dos colonos contra Preston e seus homens era alimentada pelos jornais locais com a acusação de assassinato a sangue frio, e por eles terem sido “movidos e seduzidos pela instigação do diabo e de seus próprios corações perversos” — uma afronta a uma colônia composta majoritariamente de peregrinos religiosos.

Nos meses que antecederam o julgamento dos soldados britânicos, uma batalha na imprensa foi travada entre legalistas e patriotas sobre os culpados pelo terrível incidente. Uma minoria, liderada pelo jovem advogado John Adams, pedia o respeito ao processo legal e à defesa dos britânicos. Enquanto isso, o outro lado, liderado por Samuel Adams, tentava incansavelmente incendiar a opinião pública e o júri contra os soldados em manchetes sensacionalistas onde eram caracterizados como “bárbaros ferozes sorrindo para suas presas”.

Retrato sensacionalista do Massacre de Boston, em 5 de março de 1770. A impressão foi copiada por Revere de um desenho de Henry Pelham para uma gravura publicada sob o título Os Frutos do Poder Arbitrário, ou o Massacre Sangrento, por volta de 28 de março de 1770 | Foto: Domínio Público

O primeiro julgamento foi o de Preston, seguido pelo dos soldados. Inicialmente, nenhum advogado quis representá-los. A raiva dos bostonianos contra os “assassinos implacáveis” foi intensa e alimentada pelas fake news da época. Mas John Adams deu um passo à frente, afirmando veementemente que era dever do advogado fornecer representação aos acusados de crimes: “Estes homens acusados de homicídio ainda não foram legalmente provados culpados e, portanto, por mais criminosos que sejam, têm direito, pelas leis de Deus e dos homens, a todo aconselhamento e assistência jurídica. Este é o meu dever como advogado — reforçar essa obrigação”.

Nessa época de sua carreira, o escritório de advocacia de John Adams estava se expandindo e ele era um firme defensor contra as adversidades dos colonos na Inglaterra. Mas, apesar disso ou da indignação e dos protestos de seus contemporâneos, John Adams serviu como advogado principal na defesa dos britânicos no julgamento que estabeleceria precedentes jurídicos sólidos para a futura nação.

Após várias horas de deliberação, o júri absolveu Preston e seus subordinados em um julgamento praticamente perdido para os soldados do rei da Inglaterra. Esse resultado surpreendeu a cidade, principalmente pelo ardor do sentimento contra a coroa britânica. A defesa teve sucesso em contrariar as diversas reivindicações com base na legítima defesa, que não poderia ter sido apresentada sem o respeito ao devido processo legal.

John Adams, pintura de Gilbert Stuart (1800-1815) | Foto: Domínio Público

Em sua declaração final, John Adams desmontou o caso da acusação, argumentando que o tribunal protegia tanto os soldados como os cidadãos. Ele ressaltou que matar uma pessoa inocente para se defender não era homicídio, mas homicídio culposo, e falou da intenção dos soldados de se defenderem, enfatizando que a autodefesa era um estado de direito básico.

Déspotas não têm medo de mentiras, e sim da verdade

A eloquência de John Adams no tribunal foi notável, e é desse episódio que sai uma das frases mais importantes de todos os tempos, em qualquer lugar do mundo, e que pode e deve ser usada até hoje: “Fatos são coisas teimosas e quaisquer que sejam os nossos desejos, as nossas inclinações, ou os ditames da nossa paixão, eles não podem alterar o estado dos fatos e das provas”.

Até hoje, a coragem de John Adams em empreender esse caso tão impopular constitui um exemplo sólido do respeito a todo um rito processual e ao amplo direito à defesa — tão vilipendiados hoje no Brasil.

O Massacre de Boston, em 1770, deixou lições até hoje. Inverdades podem ser confrontadas e desarmadas se as leis são respeitadas. Desinformação é combatida com mais liberdade para que a verdade exerça sua força e siga seu caminho de elucidação — independentemente dos desejos, inclinações ou ditames de projetos de tiranos, regimes totalitários, do “Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia” ou de qualquer déspota fantasiado de amante da liberdade.

Déspotas não têm medo de mentiras, e sim da verdade. Déspotas são birrentos. Mas fatos são teimosos.

Leia também “A lei violou a lei”

16 comentários
  1. Gilson Herz
    Gilson Herz

    Parabéns Ana. Cada dia mais satisfeito com a assinatura da Revista Oeste.

  2. Rômulo Eustaquio Braga
    Rômulo Eustaquio Braga

    Ana Paula… gostaria que você comentasse também o seguinte tema quanto a cassação do Senador do PL -SC ….informações mais que oficiais da LATAM não foram suficientes para libertar o preso Político FELIPE MARTINS, agora para condenar a cassação do Senador Jorge Seif informações tem que ser dadas em 48 horas …. é a justiça Brasileira julgando conforme o espectro político

  3. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Muito bom, Ana Paula.

  4. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Ana, mas para termos o devido processo legal e a verdade dos fatos que sequer a OAB respeita, precisamos ter em 2026 uma mudança profunda no Senado Federal para fazer cumprir a CONSTITUIÇÃO FEDERAL e responsabilizar os infratores com as penalidades legais. O que você acha de preencher uma das duas vagas por Minas Gerais para encher de orgulho tua mãe que deseja uma reforma no Senado Federal?.
    Basta ficar 8 anos no Senado Federal para lá possivelmente ensinar teus conhecimentos da historia politica e jurídica dos EEUU e do Brasil. Vale lembrar que assinamos a Revista Oeste por 10 anos que concidentemente termina em 2034, e lá com certeza teremos um novo Brasil democrata.

    1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
      Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

      Bem colocado.

  5. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    A informação gravita o mundo em segundos.
    Nem sempre foi assim.
    Na Independência do Brasil, os gaúchos tomaram conhecimento do ato 90 dias após o fato.
    Nasci numa pequena cidade do interior – Boa Esperança do Sul/SP – hoje com pouco mais de 15.000 habitantes.
    Quando criança lembro que os políticos locais utilizavam o coreto da praça principal para parlar ao povo.
    O que diziam era verdade absoluta.
    Hoje temos as mais diversas versões para os mais variados assuntos na palma de nossas mãos.
    Cabe a nós filtrarmos e decidirmos o que desejamos consumir.
    Não precisamos da tutela do Estado para nos dizer o que é bom.
    Sabemos errar sozinhos e se ultrapassarmos os limites é só utilizar as leis existentes para o tratamento de calúnias, injurias e difamações.
    Simples assim…

  6. Osvaldo Pasqual Castanha
    Osvaldo Pasqual Castanha

    Parabéns Ana Paula. Este edifício construído pelo STF/TSE, sob a liderança do cabeça de ovo, foi fundado em alicerce de barro, e já começou a ruir. E dentro em pouco despencará estrondosamente.

  7. MB
    MB

    Excelente artigo, Ana. A sabedoria popular está sabendo não precipitar. A mentira vai derreter.

  8. MB
    MB

    Puxadinho jacobino é perfeito! Kkk. Como diria o Mestre Guzzo: que miséria!

  9. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Todos tem o direito de se manifestar sobre qualquer assunto e os tiranos não tem argumentos senão a opressão pra justificar suas ilegalidades

  10. Aline Santos da Silva
    Aline Santos da Silva

    Muito bom Ana, amei como sempre!

  11. Rafael Lima Bechtlufft
    Rafael Lima Bechtlufft

    Esses textos da Ana tinham que ser lidos em salas de aula das escolas em todo o Brasil. Não sabia de absolutamente nada do que está escrito aqui. Parabéns pelo seu trabalho e pelo texto brilhante. Aos pais que a acompanham, leiam esse presente que a Ana nos deu e repassem aos seus filhos e netos.

  12. Emilio Sani
    Emilio Sani

    Parabéns Ana, como sempre genial e mostrando porque os Estados Unidos se tornaram o símbolo da liberdade (infelizmente hoje sofrendo alguns problemas devido as novas gerações de ‘influenciáveis’ da internet que apesar de ter todas informações na palma da mão creem erroneamente que a liberdade não precisa ser ‘mantida’ por cada geração, e infelizmente não aprenderam nada sobre as duas guerras mundiais) e o valor dos que lutaram pela liberdade do mundo todo.

  13. Auta Viviane Rocha
    Auta Viviane Rocha

    Parabens Ana Paula. Excelente artigo. A coragem de John Adams possa servir de exemplo aos advogados daqui, que estão em silêncio, acovardados. Deveriam defender o juramento que fizeram e ajudar a salvar o que ainda resta de democracia aqui no Brasil

  14. Ed Camargo
    Ed Camargo

    “Déspotas fantasiados de amantes da Liberdade”, quatro palavras que descrevem perfeitamente o consórcio Luladrão – STF.
    Eu gosto da forma concisa de escrever da Ana Paula Henkel, ela faz um uso criativo da linguagem para transmitir uma série de pensamentos em poucas palavras. Eu considero a brevidade a essência da inteligência.
    No Brasil um país tão vasto, encontramos de tudo. Existe, uma parte ignorante, inconsciente e desonrosa da sociedade e jornalistas de aluguel que quer e gosta de reis, ditadores, e todo tipo de déspotas; Mas temos também a parte educada, consciente e honrada da mesma sociedade que odeia e recusa monarcas, tiranos, opressores e qualquer tipo de autocrata.
    Ontem tive um sonho com a Constituição: A nossa constituição é um documento vivo, não só para aperfeiçoar as nossas liberdades e os nossos direitos, mas também para nos ajudar a concretizar o nosso potencial. O que nos torna livres não é a ausência de regras, mas a presença da justiça. Quando acordei, percebi a realidade que estou vivendo em um pesadelo.

  15. Jorge Luiz da Silva Rocha
    Jorge Luiz da Silva Rocha

    Parabéns Ana pelo excelente Comentário, tendo por base a História, a Verdade, a Coragem e a Temperança de John Adams na defesa da Justiça Plena… Atos que hoje estão ausentes em nossa realidade presente, mas que devem voltar num futuro próximo.

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