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Milhares de manifestantes irlandeses se reuniram no centro da cidade de Dublin para um protesto anti-imigração em massa (6/5/2024) | Foto: Shutterstock
Edição 216

O Brexit não provocou a crise migratória na Irlanda

Descaradamente, as elites irlandesas estão tentando se esquivar de um desastre que elas mesmas causaram

Tim Black, da Spiked
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Pelo jeito, a terrível Inglaterra do Brexit é culpada pela crise migratória irlandesa. Essa é a essência do argumento do governo irlandês na atual disputa diplomática com o Reino Unido sobre o fluxo de migrantes entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda.

Trata-se de uma afirmação bastante notável. Parece que eles esperam que acreditemos que a cidade feita de tendas de refugiados que se formou no centro de Dublin, os hotéis em toda a Irlanda cheios de desesperados requerentes de asilo e protestos cada vez maiores, e às vezes violentos, contra a imigração são culpa da pérfida Albion. A política do Partido Conservador britânico em relação a Ruanda, em particular, foi apontada como culpada. (Em abril deste ano, o Parlamento do Reino Unido aprovou uma lei que permite a deportação de imigrantes ilegais requerentes de asilo para Ruanda, na África

A disputa começou no dia 30 de abril, quando Helen McEntee, a desafortunada ministra da Justiça da Irlanda, se dirigiu ao Comitê de Justiça do Oireachtas. Lá, ela afirmou que, no mês de abril, acredita-se que mais de 80% das pessoas que solicitaram asilo na Irlanda estejam chegando pela fronteira com a Irlanda do Norte e o Reino Unido. Pelo jeito, o plano britânico de enviar essas pessoas a Ruanda para processamento e reassentamento está levando aqueles que entraram no Reino Unido ilegalmente a buscar refúgio na Irlanda — ao que parece, a terra de muito poucas boas-vindas agora.

No dia seguinte à declaração de McEntee, Micheál Martin, ministro das Relações Exteriores da Irlanda, foi ainda mais longe. Ele afirmou que o país está recebendo cada vez mais imigrantes desde “a primeira iteração e publicação dessa estratégia de Ruanda [dois anos atrás]”. Isso mesmo. A política de Ruanda, amplamente prevista para ser de uma ineficácia espetacular para deter a crise dos pequenos barcos no Canal da Mancha, supostamente teve um grande efeito na Irlanda, alimentando a crise migratória por dois anos. Não é de admirar que Rishi Sunak, o primeiro-ministro britânico, tenha considerado a reclamação de Martin um elogio velado. Ele afirmou na Sky News no dia 28 de abril que isso mostrava que o esquema de Ruanda de fato estava conseguindo dissuadir os migrantes de se instalarem na Grã-Bretanha.

Helen McEntee, ministra da Justiça da Irlanda | Foto: Reprodução/Redes Sociais
‘Não tem nada para eles fazerem’

Mas Sunak não deveria ficar tão animado. A ideia de que a política britânica de Ruanda é responsável pela crise migratória da Irlanda é absurda. Ao fazer essa afirmação, a classe política irlandesa está apenas tentando repassar a responsabilidade por problemas que são totalmente sua criação. É uma tentativa flagrante de desviar a ira pública de seu próprio papel primordial no que está se tornando rapidamente um desastre social.

Afinal, não foi o governo britânico que presidiu os níveis sem precedentes de imigração na Irlanda nas últimas décadas — com recém-chegados ultrapassando 140 mil até abril de 2023, o número mais alto em 16 anos. Não foi o governo britânico que, apesar da crise habitacional crônica da Irlanda, manteve a fronteira aberta para cada vez mais pessoas. Com certeza não foi o governo britânico que estabeleceu o sistema de asilo totalmente disfuncional irlandês, deixando o país com um dos maiores atrasos nos pedidos de asilo na Europa.

Diante dos problemas causados por uma abordagem catastrófica e uma má administração da migração, o governo irlandês está tentando anular a decisão de sua própria Suprema Corte e devolver os imigrantes para a Grã-Bretanha

Não, essas são as tristes realizações dos próprios líderes políticos da Irlanda. Eles abriram as fronteiras enquanto ignoraram, de modo arrogante e por completo, as preocupações de seus próprios cidadãos e não conseguiram criar as estruturas necessárias para receber e integrar os recém-chegados. E alegremente se deliciaram com a virtude de serem pró-imigração, enquanto gerenciavam de forma desastrosa o influxo resultante.

O tratamento de quem pede asilo é um exemplo gritante. Sem conseguir processar o número cada vez maior de pedidos e sem nenhum alojamento adequado (daí o surgimento de um acampamento de refugiados na própria capital), o governo irlandês tem transferido milhares de requerentes para algumas das comunidades mais pobres da Irlanda, tomando conta de hotéis próximos, instalações de lazer e outras formas improvisadas de alojamento. Pior ainda, isso tem sido feito à revelia dos moradores locais. Como um morador de Rosslare Harbour que protestou contra o alojamento de solicitantes de asilo em sua área local disse ao Irish Times em dezembro: “Não há serviços aqui. Não tem nada para eles fazerem nem lugar para trabalhar. A comunidade tem muito pouco”.

Zombaria presunçosa

Esse tratamento inadequado dos requerentes de asilo tem gerado um ressentimento considerável entre os irlandeses nos últimos anos — e parte disso tem sido explorado por figuras da extrema direita. Houve marchas de protesto, bloqueios de hotéis para migrantes e, o mais vergonhoso, ataques a bombas e incêndios criminosos em centros de alojamento para migrantes em potencial. Houve também o pequeno incidente da revolta em Dublin em novembro passado. No final de abril, os protestos contra a realocação do acampamento de refugiados de Dublin na vila de Newtownmountkennedy tornaram-se violentos. Os moradores atearam fogo a um dos prédios destinados aos imigrantes e atiraram pedras na Garda (a polícia irlandesa). Esse é o contexto da postura recente do governo irlandês contra a Grã-Bretanha. Ele está sob uma pressão incrível para ser visto fazendo algo.

A hipocrisia é impressionante em muitos níveis. Desde que os britânicos votaram para deixar a União Europeia em 2016, as elites irlandesas têm adorado retratar o Reino Unido como um Estado xenófobo, ultranacionalista, loucamente obcecado pelo controle de suas fronteiras. Há pouco mais de um mês, o Tribunal Superior da Irlanda afirmou que o Reino Unido não era mais um lugar “seguro” para imigrantes, dado o risco de que fossem enviados para Ruanda. O que resultou em uma zombaria presunçosa e de superioridade moral por parte da elite irlandesa (bem como das próprias elites britânicas favoráveis à permanência na UE) em relação à Grã-Bretanha do Brexit. Mas agora, diante dos problemas causados por uma abordagem catastrófica e uma má administração da migração, o governo irlandês está tentando anular a decisão de sua própria Suprema Corte e devolver os imigrantes para a Grã-Bretanha. Aparentemente, não importam mais as reclamações da intelectualidade liberal sobre a política de Ruanda violar o direito internacional ou afrontar os valores humanitários. (De todo jeito, o governo britânico ignorou os apelos da Irlanda para receber os imigrantes de volta.)

Dois pesos, duas medidas

Ainda mais hipócrita é o fato de, pelo jeito, os políticos irlandeses terem decidido que não se importam se houver uma fronteira rígida entre a Irlanda e a Irlanda do Norte. Engraçado. Durante as negociações do Reino Unido sobre a saída da UE, a elite irlandesa considerou a possibilidade de qualquer tipo de fronteira entre a Irlanda e a Irlanda do Norte algo inconcebível. Chegaram a dizer que até mesmo uma simples verificação alfandegária ocasional seria uma ameaça ao Acordo de Belfast e à paz na Irlanda. Mesmo assim, o governo irlandês enviou a Garda para ajudar a policiar a fronteira. É como se a fronteira da Irlanda do Norte só fosse importante para eles como uma arma na luta contra o Brexit.

Dois pesos e duas medidas que são reveladores. Eles capturam o virtuosismo cínico das elites pró-UE da Irlanda e seu completo distanciamento do público. Diante das consequências de seu péssimo tratamento da imigração, manobras políticas descaradas foram feitas. De defenderem as fronteiras abertas, eles passaram a tentar deportar imigrantes para o suposto inferno da Grã-Bretanha “insegura”. Agora querem até uma fronteira mais rígida entre o norte e o sul.

Só uma coisa se mantém consistente. Continuam furiosos e se posicionando contra a Grã-Bretanha do Brexit. Parece ser tudo o que lhes resta.


Tim Black é colunista da Spiked.

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1 comentário
  1. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    A Grã-Bretanha tem razão em sair da UE e impor rigor na imigração. Os países da Europa têm que cuidar do seu povo, assim como os africanos. E a UE só serve pra quem estar enfrentando dificuldades, é como o Brasil deve se comportar com o Mercosul

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