Pular para o conteúdo
publicidade
Geraldo Alckmin, presidente da República em exercício, visita áreas destruídas pelas chuvas no Rio Grande do Sul e anuncia medidas (10/9/2023) | Foto Cadu Gomes/VPR
Edição 216

A virtude da prevenção

O que é cíclico não é excepcional. Há a obrigação das autoridades de terem planos preventivos, com potencial de mobilização — como um exército, que tem que estar sempre pronto para a guerra

Alexandre Garcia
-

Tranca após a porta arrombada? Batendo cabeça? A enchente do setembro último não serviu para prevenir e abrandar os efeitos da enchente do maio seguinte. A Comissão de Assuntos Econômicos do Senado agora aprovou um projeto de lei de criação da Política Nacional de Gestão Integral de Risco de Desastres (PNGIRD), que prevê um complexo sistema nacional para ser posta em prática. Só faltou informar aos senadores que isso já existe. O Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil está na Lei Federal nº 12.608, de 10 de abril de 2012, e espera para ser posto em prática há 12 anos. O artigo 2º diz que é dever da União, Estados e municípios reduzir o risco de desastres. O artigo 5º diz que o primeiro objetivo do Plano é reduzir os riscos de desastres. Já existe até o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sinpdec), com 11 “produtos”. E existe, ainda, uma Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, dentro do Ministério de Integração e do Desenvolvimento Regional. 

Tudo com nomes e siglas tão compridos quanto o tamanho da burocracia que produz intenções em palavras bonitas, inscritas no site: “Gestão de Riscos e Desastres, com orientações e estratégias de atuação da Defesa Civil em cinco frentes: prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação. Para a elaboração das estratégias, serão realizados levantamentos e análises de dados, bem como diagnósticos situacionais e cenários prováveis de atuação em curto, médio e longo prazo”. Se tudo isso tivesse sido convertido em ações, fora das reuniões burocráticas para gerar propaganda, se já tivessem sido adotadas ações preventivas, quantas vidas e prejuízos poderiam ter sido poupados?

Geraldo Alckmin, presidente da República em exercício, durante reunião com ministros em 8 de setembro de 2023, para tratar das enchentes no Rio Grande do Sul, no Palácio do Planalto, em Brasília (DF) | Foto: Cadu Gomes/VPR

Voluntários no Rio Grande do Sul sugerem que esta catástrofe sirva para prevenir e abrandar os efeitos da próxima cheia. Todos sabem que vai haver outra — e mais outra. Eu mesmo vivi isso durante metade de minha vida, morando na margem esquerda do Rio Jacuí e depois nas duas margens do Rio Taquari. Todos os anos há enchentes, e algumas devastadoras, como foi a de 1941, nos mesmos dias de maio, comprovando a regularidade do ciclo. A diferença é que hoje há mais gente morando em áreas alcançadas pelo transbordamento dos rios. Todos os anos nuvens carregadas de umidade quente da Amazônia — um oceano voador — se chocam, sobre o Rio Grande, com o ar frio vindo da Patagônia, e aí a umidade se condensa e escorre como na parte externa de um copo com água muito fria. A água cai das nuvens e segue as ordens da gravidade. Aprendi isso desde a infância. Muito remei “caíque” na minha rua e no quintal de nossa casa. As casas onde morei em Estrela e Lajeado foram agora cobertas pela água.

Na catástrofe, a rede de solidariedade é impressionante, revelando as virtudes do povo brasileiro. E, entre uma e outra catástrofe, reina a falta da virtude de prevenção por parte do Estado brasileiro

Assim, isso é cíclico, portanto previsível. Neste ano, o choque de frio com calor úmido sobre o Estado de clima temperado foi intenso, e um aviso fora dado em setembro, com as águas do Taquari subindo 30 metros em uma noite. O que é cíclico não é excepcional. Há, pois, a obrigação das autoridades de terem planos preventivos, com potencial de mobilização — como um exército, que tem que estar sempre pronto para a guerra. Não é impossível saber para onde vai a água quando ela extravasa da calha de um rio. Não é impossível saber quando uma encosta se torna um risco. Não é impossível extrapolar a cota de uma inundação na hora de licenciar construções. Não é impossível prever e emitir aviso de chuvas torrenciais. Não é impossível fiscalizar as empreiteiras para garantir resistência de pontes e rodovias. Não é impossível corrigir o assoreamento dos rios com dragagem. Não é impossível e é obrigação do Estado, que existe para também preservar vidas e patrimônio do povo a que serve.

Vista do Rio Taquari, em Arroio do Meio, no Rio Grande do Sul (17/1/2015) | Foto: Wikimedia Commons

Quando o Estado não previne, remediar é que é impossível. Não se recuperam vidas perdidas. Nem colheita, gado, móveis, imóveis arrastados, destruídos. O Rio Grande vem de três anos de secas que prejudicaram as safras; agora é o excesso d’água. Além da natureza, há os aproveitadores, vigaristas, bandidos. Saqueadores roubam embarcações que estão resgatando gente, animais e bens, para saquear as casas semi-submersas. É preciso ficar de olho em contas de doações que só beneficiam o dono do Pix. Como em setembro, desviam doações. O governo federal anuncia liberação de valores. Aí vem uma comparação inevitável: o ministro Toffoli dispensou a Odebrecht e a J&S dos R$ 15 bilhões dos acordos feitos na Lava Jato.

O Rio Grande do Sul tem uma população resiliente. Esta catástrofe abate mas não derrota. Ninguém desiste. Os embates forjaram o gaúcho. Esta enchente é mais um desafio a ser enfrentado. Ninguém no Rio Grande é escravo do clima, do governo, ou do que quer que seja. Liberdade e iniciativa entraram na medula, geradas pelos mais variados entreveros nos últimos séculos, misturando sangue de charruas, minuanos, guaranis, espanhóis, portugueses, depois alemães, italianos, sírio-libaneses — e forjaram uma têmpera de lâmina de aço e cabo de prata. É um povo que canta seu hino como um lema; um hino que ensina que, para ser livre, não basta ser bravo, aguerrido e forte; é preciso ter virtude. Na catástrofe, a rede de solidariedade é impressionante, revelando as virtudes do povo brasileiro. E, entre uma e outra catástrofe, reina a falta da virtude de prevenção por parte do Estado brasileiro. O governo está mais preocupado com a crítica do que com a prevenção.

Leia também “Expostos ao público”

19 comentários
  1. Horacio Jorge Alvarez Rojo
    Horacio Jorge Alvarez Rojo

    Brilhante Alexandre Garcia. Confio que o povo gaúcho vai sair dessa mais forte e com um estado melhor. Se eles aproveitam a oportunidade para replanejar e promover uma melhor distribuição da população, desconcentrando o grande Porto Alegre para cidades menores. É importante uma forte liderança que até agora não se viu no governador.

  2. Abf
    Abf

    Perfeito. Pimenta esconde-se da incompetência no mofado desejo de censurar a critica. Alguém já viu sair da boca de pimenta algum plano de curto, medio e longo prazo para o ocorrido? é só bla-bla-bla. A combinaçao de lula ao molho de leite apimentado não apetece.

  3. ANTONIO AGNALDO MENDONÇA
    ANTONIO AGNALDO MENDONÇA

    A pior catástrofe que o povo sofre hoje é esse desgoverno, mata muito mais do que as chuvas do RS. Que Deus nos dê forças e sabedoria para enfrentar esse mal que açola nossa nação…

  4. Paul Getty S Nascimento
    Paul Getty S Nascimento

    Esse artigo do mestre Alexandre Garcia é uma poesia Épica… parabéns!!!

  5. Ernesto Quast
    Ernesto Quast

    Não entendi a foto do chuchu na chamada. Quando ele foi Governador de São Paulo, fez a dragagem do rio Tietê, para minimizar as constantes inundações na cidade de São Paulo. Os resultados foram evidentes, bons tempos aqueles, antes da abdução ou provável ameaça que o chuchu sofreu, talvez até algo relacionado com a morte do filho, nunca saberemos…

  6. Nairton José Bádue
    Nairton José Bádue

    Don t cry for me Brazilia!

  7. Aeduardo
    Aeduardo

    Artigo brilhante e esclarecedor do grande jornalista gaucho Alexandre Garcia.
    Dando lição até nos parlamentares ignorantes naquilo que deveriam conhecer!
    O forte abraço à população do Rio Grande de fortíssimas tradições dirigida a você simbólicamente.
    Deus proverá e em sua infinita misericórdia trará a força para superar esta imensa dor por que passam os irmãos gaúchos!

  8. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Realmente a comparação é inevitável, da manobra corrupta do agente Dias Toffoli na anulação das igualmente corruptas JBS e Odebrecht.

  9. Alex Rodrigues dos Santos
    Alex Rodrigues dos Santos

    Sempre falo isso, Alexandre Garcia traduz com maestria o pensamento de muitos gaúchos, essa catástrofe aconteceu antes, já tinha acontecido logo ali, no ano anterior, e nenhuma atitude foi tomada pelos nossos governante, essa catástrofe, como disse Alexandre, era previsível, e vai acontecer novamente no próximo ano, resta saber o que esses mesmos governantes farão daqui para frente, para prevenir, considerando que ainda teremos os efeitos desta catástrofe, pois não dá para voltar ao normal em poucos meses, considerando o estado dos locais atingidos.

  10. Bernardo Rocha Bordeira
    Bernardo Rocha Bordeira

    Aplaudo de pé. Parabéns, Alexandre Garcia!

  11. José Carlos Bolognese
    José Carlos Bolognese

    Aprendi na minha querida e gaúcha Varig que qualquer evento fora das operações normais, era, além dos prejuízos, conhecimento a ser aplicado na melhoria dos procedimentos. Hoje aplico esse aprendizado na minha vida, minha casa, meu carro etc.
    Pena que esse mindset não habita mentes estatais.

  12. Fernando Anthero
    Fernando Anthero

    Texto perfeito

  13. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Tanta sigla Tanta reunião e nenhuma ação, o governo do faz de conta. Devolvam o governo à Bolsonaro e tire os mal caráter da justiça que vocês vão ver ação

    1. MNJM
      MNJM

      Texto digno do mestre Garcia.

  14. JOSÉ DE SÁ PESSOA
    JOSÉ DE SÁ PESSOA

    Para calar os alienadores da mídia podre, sugiro um estudo sobre as causas da enchente de 1941. Pois, se esta Catástrofe é cíclica, as mudanças climáticas não seriam o “cerne” da problema. Pois, o mundo de 41 era bem diferente, em termos de exploração dos recursos naturais, comparado com os dias atuais.

  15. Ivete Trigo Delgado de almeida
    Ivete Trigo Delgado de almeida

    Sempre preciso ,Alexandre Garcia ,conhece o Rio Grande do Sul é Gaúcho orgulhoso de sua terra .Não vou comentar nada ,ele já disse tudo

  16. Ronaldo Rodrigues Rosa
    Ronaldo Rodrigues Rosa

    Este brilhante artigo, apesar de trazer notícia muito triste, é revigorante. Saber da história de luta do Povo do Sul sobretudo sua capacidade de resiliência, nos motiva e fortalece a nossa fé na humanidade. Parabéns, Alexandre Garcia.

  17. Tatiana Barbosa
    Tatiana Barbosa

    Mais límpido, impossível

  18. RAIMUNDO ITAMAR LIMA GADELHA
    RAIMUNDO ITAMAR LIMA GADELHA

    Os governantes e autoridades legislativas, dentre outras, mostraram que se interessam somente pelos seus prazeres!!!

Um drone mostra equipes de resgate dirigindo um barco em uma rua inundada em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil (7/5/2024) | Foto: Reuters/Diego Vara Anterior:
Carta ao Leitor — Edição 216
Próximo:
A tragédia da tragédia
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.