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Ministro Alexandre de Moraes, em sessão plenária do STF | Foto: Gustavo Moreno/SCO/STF
Edição 216

A normalização da censura

Para fundamentar a ordem de prisão e censura de jornalistas, juízes têm citado em suas decisões pareceres e declarações de Alexandre de Moraes

Loriane Comeli
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O jornalista pernambucano Ricardo Antunes, de 62 anos, teve a prisão decretada por uma juíza de Recife há duas semanas por supostamente descumprir decisões judiciais em um processo por crimes contra a honra do promotor estadual Flávio Roberto Falcão Pedrosa. Trabalhando como jornalista independente e responsável por um site de notícias, um dos mais acessados do Nordeste, ele teria praticado difamação e injúria por meio de reportagens sobre supostas irregularidades cometidas pelo membro do Ministério Público de Pernambuco. Antunes só não foi preso porque estava de férias em Madri.

A ordem de Andréa Calado da Cruz, juíza da 11ª Vara Criminal de Recife, foi revogada no Tribunal de Justiça de Pernambuco, em 30 de abril, por falta de fundamentação. Mesmo assim, Antunes teme voltar ao Brasil — embora o retorno vá acontecer em breve. “Hoje, meu sentimento é de pavor, porque a gente não sabe”, disse Antunes. “O sistema judiciário brasileiro está tão maluco que a gente não sabe o que pode valer uma coisa, o que não pode valer. O STF extrapolou muita coisa. Tudo isso começou com esse ‘Inquérito das Fake News‘, e aí é que está o perigo.”

De fato, a juíza, para fundamentar a ordem de prisão do jornalista e determinar a censura total ao profissional, citou o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, que acumulou decisões nos últimos anos para censurar páginas na internet e perfis em redes sociais. Além de bloquear contas bancárias, suspender pagamentos aos seus donos, e mandar para a prisão quem expressa críticas e opiniões consideradas impróprias pelo ministro.

Ministro Alexandre de Moraes, em sessão plenária do STF | Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Citando Moraes, a juíza Andréa Calado da Cruz disse que “a liberdade de expressão constitucionalmente assegurada não pode ser utilizada como salvo-conduto para o cometimento de infrações penais, tampouco autoriza a ofensa à honra alheia”.

Em seguida, citou duas decisões de Moraes. Com a primeira, o ministro determinou a retirada do ar de todas as páginas do Partido da Causa Operária (PCO), que o tinha chamado de “skinhead de toga”. Como relator do caso, Moraes disse que “não se confunde liberdade de expressão com impunidade para agressão”. E que, “uma vez desvirtuado criminosamente o exercício da liberdade de expressão, a Constituição Federal e a legislação autorizam medidas repressivas civis e penais, tanto de natureza cautelar quanto definitivas”.

A necessidade da prisão

A outra decisão citada pela juíza foi tomada no chamado “Inquérito das Fake News” (Inquérito nº 4.781), instaurado há mais de cinco anos por Moraes e fulminado por juristas de todos os vieses ideológicos como absolutamente ilegal e inconstitucional. Em decisão proferida em 2023 contra os investigados — o inquérito tramita de forma sigilosa —, Moraes determinou o bloqueio das redes sociais deles em razão da “necessidade, adequação e urgência na interrupção dos discursos com conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática”.

E foi exatamente isso o que Andréa fez contra Ricardo Antunes. Ela determinou o bloqueio do site do profissional e de seus canais no Instagram, Facebook, Twitter e YouTube, com o argumento de que houve “inadmissível e injustificável descumprimento da ordem judicial” pelo jornalista ao não remover conteúdos relacionados ao promotor.

Trecho da decisão judicial do caso Ricardo Antunes | Foto: Reprodução

Na justificativa para a prisão, ela disse que “o acusado, nitidamente, tem a intenção de frustrar a aplicação da lei penal em flagrante desrespeito ao ordenamento jurídico” e citou fatos que comprovariam a má intenção de Antunes. Todas as alegações foram afastadas pelo desembargador Isaías Andrade Lins Neto, da 2ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça de Pernambuco, para quem “a prisão preventiva foi decretada à míngua de qualquer fundamentação idônea”. Ou seja, Andréa não demonstrou a necessidade da prisão.

Jornalista Ricardo Antunes | Foto: Arquivo pessoal
Jornalista de 73 anos presa em Maceió

A prisão de um profissional da imprensa acusado de crimes contra a honra por descumprir decisão judicial, como é o caso de Ricardo Antunes, não é um caso único. No ano passado a jornalista Maria Aparecida Oliveira, de 73 anos, teve menos sorte que o colega. Ficou na cadeia por 22 dias, entre julho e agosto de 2023, por decisão do juiz George Leão de Omena, da 12ª Vara Criminal de Maceió. Omena também citou “o eminente ministro Alexandre Moraes” para justificar as medidas contra a profissional.

A prisão de jornalistas é a prova mais completa de censura, terminantemente vedada pela Constituição Federal, no artigo 220

Omena usou o trecho no qual Moraes justifica a prisão do jornalista Allan dos Santos, no inquérito das “milícias digitais”, instaurado há quase três anos — e ainda sem conclusão, como o das “fake news” e o dos “atos antidemocráticos”. Segundo o magistrado de primeiro grau, as considerações contra Santos “tranquilamente poderiam servir ao presente processo” contra Maria Aparecida. Omena reproduziu o seguinte trecho de Moraes:

“Nesse contexto, tendo sido inúteis as medidas anteriormente decretadas, e nos termos do artigo 312 do Código de Processo Penal, presente prova da existência de crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado, a prisão preventiva de Allan Lopes dos Santos é a única medida apta a garantir a ordem pública, eis que o investigado continua a incorrer nas mesmas condutas investigadas, ou seja, permanece a divulgar conteúdo criminoso, por meio de redes sociais, com objetivo de atacar integrantes de instituições públicas, desacreditar o processo eleitoral brasileiro, reforçar o discurso de polarização; gerar animosidade dentro da própria sociedade brasileira, promovendo o descrédito dos poderes da república, além de outros crimes, e com a finalidade principal de arrecadar valores.”

Ilustração: Montagem Revista Oeste/Shutterstock

A prisão de Maria Aparecida foi decretada em processo por calúnia, difamação e injúria ajuizado pela juíza Emanuela Porangaba, que acusa a jornalista de usar seu canal no YouTube para afirmar que a magistrada fez “maracutaias” em decisões relacionadas à empresa Braskem. Maria Aparecida responde, nesse caso, pelos crimes de calúnia, difamação e injúria.

Trecho da decisão do juiz Omena, no caso Maria Aparecida | Foto: Reprodução
Periculum libertatis

Segundo o juiz alagoano, a prisão da jornalista é necessária para evitar que ela “continue delinquindo no transcurso da persecução penal, como comumente sempre se deu”, e fazer com que ela pare de disseminar “verdadeiro discurso de ódio, que em nada se apresenta como liberdade de expressão”.

Maria Aparecida somente saiu da prisão depois de recorrer ao STF. Foi Cristiano Zanin que, seguindo parecer da Procuradoria-Geral da República, colocou a jornalista em liberdade. “Embora a argumentação exposta tenha apresentado alguns elementos concretos [indícios de autoria e prova de materialidade], não restou demonstrado o periculum libertatis da ré, tendo as instâncias ordinárias deixado de justificar, adequadamente, a inviabilidade da fixação de medidas cautelares diversas no caso”, justificou a subprocuradora-geral da República Samantha Chantal Dobrowolski, no habeas corpus impetrado pela defesa da profissional alagoana. “A adoção da preventiva revela-se gravosa, considerando a idade avançada da ora paciente e a espécie de tipo penal em tela”, acrescentou. A tese foi integralmente acatada por Zanin.

Apesar da ordem de Moraes, Allan dos Santos — cujo caso foi citado como parâmetro para prender Maria Aparecida — não chegou a ser preso. Ele segue em liberdade nos Estados Unidos. As autoridades norte-americanas, que não reconhecem crimes de opinião, se negam a extraditar ou colocar o jornalista na lista de foragidos da Interpol.

Ordens de prisão são ilegais

O advogado constitucionalista André Marsiglia explicou que as ordens de prisão contra os dois jornalistas, além de fundamentadas em Alexandre de Moraes, guardam outras semelhanças: são ilegais, corporificam a censura e relativizam a liberdade de informação e de imprensa garantida na Constituição Federal.

Ilustração: Shutterstock

Para Marsiglia, a prisão de jornalistas é a prova mais completa de censura, terminantemente vedada pela Constituição Federal, no artigo 220: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. Por isso, segundo Marsiglia, as duas decisões não são apenas tecnicamente erradas, mas são “censórias, porque o jornalista fica preso, não pode mais se manifestar e há uma determinação de retirada de conteúdo”.

O principal problema da atualidade, segundo Marsiglia, é que antes, quando um juiz exorbitava sua atribuição e concedia uma decisão ilegal, os tribunais superiores prontamente cassavam a ordem. “Havia uma certeza na advocacia de que, após recursos, e sobretudo se o caso chegasse ao Supremo Tribunal, isso ia ser revertido.” Agora, porém, houve uma “inversão de valores”, e o próprio “guardião da Constituição” é a fonte das decisões arbitrárias. “Os juízes estão sendo alimentados por uma jurisprudência equivocada. Temos esses dois casos conhecidos, mas podem estar ocorrendo outros. Temos isso sistematizado dentro da mais alta Corte do Brasil.”

‘Fechar o jornal é mais que um absurdo’

Marsiglia também alertou que parte da imprensa tradicional ignora as prisões ou até “comemora” as medidas arbitrárias contra jornalistas independentes ou “blogueiros”, como Allan dos Santos, Paulo Figueiredo e Rodrigo Constantino, para não estender a lista — o que é um erro, porque a censura, quando instalada, atinge todos. “O problema é que essa decisão ilegal fica como jurisprudência. Hoje estamos falando de dois casos, mas daqui a pouco isso atinge a mídia como um todo”, afirmou. “A censura é algo que, se você não matar na raiz, vai se voltar em algum momento contra você.”

Ministro Alexandre de Moraes, em sessão plenária do STF | Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Leia também “A institucionalização da censura pelo TSE”

6 comentários
  1. Alex Rodrigues dos Santos
    Alex Rodrigues dos Santos

    Fato! a Ditadura está aí, só não ve quem não quer!

  2. Rui Licinio Filho
    Rui Licinio Filho

    Coincidentemente, esses dois juízes são do Nordeste. Para mim, que sou baiano de ascendência piauiense, isso é uma desgraça. Esses “juízes” tinham que ser processados por abuso de autoridade! Magistrado que fundamental suas decisões baseado no Alexandre de Imorais é tão psicopata quanto ele!

  3. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Fundamentar uma decisão com base no Alexandre de Moraes, por aí você tira o nível que está o judiciário brasileiro.

  4. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Essa juíza de Pernambuco e o juíza de Alagoas não tem preparo nem pra ser censor de escola pública nem inspetor de quarteirão. O mal é achar que o estado é seu. Ô Zé tapado o estado é abstrato, e se espelhar em um tirano pra falar de direito de ordenamento jurídico é constatar que não direito

  5. Olnei Pinto
    Olnei Pinto

    Estamos no fio da navalha , onde já houveram inúmeros injustiçados por este arbítrio que vai se conselidando no topo do judiciário .

  6. Maurílio Ferreira
    Maurílio Ferreira

    Já vivemos um consórcio ditatorial, com a mancomunação criminosa entre o narcopresidente, e o supremo “soltador” de traficantes e bandidos em geral. Essa é a cúpula da quadrilha que hoje comanda o Brasil.

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