O aparato de vigilância do TSE

Há pouco mais de um mês, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, lançou o Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia. Usando a sigla Ciedde, o grupo — cujo símbolo lembra o olho do Grande Irmão — promete combater fake news durante as eleições municipais e nas disputas futuras. Esse órgão vai ser comandado pelo presidente em exercício do TSE, terá sete funcionários na diretoria e contato direto com órgãos do Estado.

O grupo de trabalho, contudo, é apenas a ponta de um iceberg. O Ciedde vai anabolizar uma estrutura ampla que opera no TSE há dois anos. Trata-se da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED), ou “quartel-general antifake news”, conforme conversas nos corredores do prédio. Criada em fevereiro de 2022, durante o mandato de Luiz Edson Fachin, a AEED é composta de oito servidores e opera no nono andar do TSE, em Brasília. Inicialmente, o foco era apenas “combater a desinformação” divulgada entre os candidatos, mas o escopo acabou abrangendo a análise de “conteúdos mentirosos” sobre toda a Justiça Eleitoral. Em paralelo à vigilância, a assessoria passou a oferecer cursos de capacitação para pessoas ligadas ao Direito aprenderem a lidar com fake news na internet em meio às eleições.

Embora tenha sido implementada sob Fachin, a AEED já estava prevista no Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação (PPED), da Justiça Eleitoral. O PPED foi lançado em agosto de 2019, sob a presidência de Rosa Weber, e se tornou permanente dois anos depois, em agosto de 2021, com a assinatura do substituto de Rosa, o ministro Luís Roberto Barroso. A iniciativa ocorreu em um momento no qual o TSE deu uma guinada ideológica, com o lançamento de departamentos voltados para a diversidade e até mudança para a chamada “linguagem inclusiva”, de modo a não praticar algum tipo de discriminação contra as minorias.

Ministério da Verdade

Com Moraes no comando do TSE, a AEED ganhou musculatura ao expandir seus limites de atuação. Isso porque o presidente da Corte deu ao órgão um perfil policialesco para investigar conteúdos que o ministro considerava falsos — a mudança de postura desagradou até mesmo gente do TSE. Na “era Fachin”, a AEED estava subordinada a Frederico Franco Alvim, servidor de carreira do TSE com interesse na pesquisa acadêmica sobre desinformação e eleições. Quando assumiu a presidência do TSE, em agosto de 2022, Moraes mudou o perfil da chefia da AEED. Em maio de 2023, pôs o delegado da Polícia Federal (PF) José Fernando Chuy na assessoria.

Em meio às mudanças da AEED, montou-se uma força-tarefa interna para atrair parceiros dispostos a colaborar com a cruzada de Moraes no enfrentamento da mentira. Para monitorar a internet e as redes sociais, a AEED precisaria de mais braços. Por isso, estabeleceu, ao longo do tempo, parcerias com 162 empresas de tecnologia, entre elas big techs, diversos partidos políticos (PT, PSDB, Psol e MDB são alguns deles), vários sindicatos e órgãos públicos (Câmara e Senado), ligados ou não à administração federal.

Das grandes empresas de tecnologia, Microsoft, Google, Facebook, WhatsApp, Kwai, Twitch, Telegram e X ajudam a AEED. As agências de checagem Aos Fatos e Lupa e o site Boatos.org aumentam as fileiras da polícia do pensamento, assim como a grande mídia, com destaque para veículos de comunicação do Grupo Globo e a agência de notícias internacional France-Presse. Mesmo as ONGs, algumas delas financiadas por magnatas com viés de esquerda, como George Soros, não ficaram de fora, sendo as principais atuantes na corte eleitoral Redes Cordiais, Avaaz, Instituto Igarapé e Vero, ligada ao influenciador de esquerda Felipe Neto. Empresas de monitoramento de redes sociais, tais como Novelo Data, Palver e V-Tracker, também apoiam o TSE por meio de ajuda no ofício da AEED.

Embora exista há dois anos, a assessoria não era tão conhecida até a revelação dos Twitter Files Brasil. Na esteira do vazamento de documentos que escancaram a atuação de Moraes no TSE, um grupo de congressistas norte-americanos divulgou alguns documentos nos quais o nome da AEED aparece diversas vezes em ordens de Moraes para censurar perfis nas redes, durante as eleições. Em um dos casos, o ministro escreveu que o bloqueio de determinada página se justificava porque a AEED havia descoberto uma “manifestação pública que atinge a integridade e a normalidade do processo eleitoral”. Essa explicação se repete em uma série de ordens emitidas pelo juiz do TSE.

Mesmo com Moraes passando o bastão à sua vice, Cármen Lúcia, o TSE deve permanecer no caminho que conduz à censura

Sob os olhos do Grande Irmão

Toda essa estrutura no TSE ganhará ainda mais força com o Ciedde, que será uma espécie de braço executor, e o responsável por integrar a AEED aos 27 Tribunais Regionais Eleitorais. Na cerimônia de inauguração do centro, estiveram presentes diversas autoridades, as quais selaram acordos de cooperação com o Ciedde. Nas eleições deste ano e nas disputas futuras, o colegiado poderá contar com a Advocacia-Geral da União, o Ministério da Justiça, a PF, a Procuradoria-Geral da República, a Anatel, que prometeu tirar conteúdos do ar imediatamente depois de acionada pelo TSE, e uma grande constelação de big techs.

O aparato de vigilância continuará sob o controle de Moraes, que nomeou pessoas de confiança para cargos estratégicos. Isso porque um dos integrantes da diretoria do Ciedde é o ministro Floriano de Azevedo Marques, advogado que chegou ao TSE por indicação do próprio Moraes ao presidente Lula, no ano passado, e que ficará no tribunal até 2025. Na Corte, ele é visto como um dos aliados de primeira hora do ministro do STF. Há também o delegado Chuy, da PF, no comando da AEED.

Mesmo com Moraes passando o bastão à sua vice, Cármen Lúcia, o TSE deve permanecer no caminho que conduz à censura. Cármen, que em 2022 votou pela censura “só desta vez”, foi relatora das 12 resoluções que vão disciplinar as eleições. As medidas regulamentam a inteligência artificial e tratam até da responsabilização de plataformas digitais sobre o conteúdo publicado nelas. Os documentos abrangem o calendário das eleições, os atos gerais do pleito, sistemas eleitorais, gestão e distribuição dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, pesquisas eleitorais, reclamações e pedidos de direito de resposta, auditorias, registro de candidaturas, prestação de contas, propaganda e cadastros gerais.

André Marsiglia, advogado constitucionalista, não acha prudente um órgão que fiscaliza as redes sociais estar subordinado a uma entidade que será a responsável por também remover esse conteúdo. “O papel do TSE não pode ser confundido com o do Ministério Público Federal, que fiscaliza”, constatou Marsiglia. “Polícia, MPF e Judiciário são instituições diferentes, que não podem ser colocadas debaixo do mesmo guarda-chuva, sob pena de violarmos um dos princípios mais importantes da Constituição: a independência das instituições democráticas.” Ainda segundo Marsiglia, a criação de um órgão como o Ciedde “contamina” a independência do TSE como órgão julgador. O advogado Alberto Rollo, especialista em Direito Eleitoral, acrescentou que a atuação do Ciedde pode “esbarrar no limite da censura”. “Caberá sempre à Justiça examinar se as recomendações estão de acordo com a Carta Magna”, disse.

Na distopia 1984, de George Orwell, um dos aparatos de vigilância e repressão do Grande Irmão, entidade autoritária que tudo vê, é o Ministério da Verdade. Todos estão sob a constante vigilância das autoridades ligadas ao regime, cuja arma mais eficiente é a chamada “teletela”. Qualquer opinião dissonante do pensamento do establishment é rapidamente calada por agentes que integram a corporação chamada “Polícia do Pensamento”, à disposição do governo autoritário. Qualquer semelhança entre a história descrita por Orwell e a realidade brasileira não é mera coincidência.

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