No Brasil atual, há temas que são de uma urgência tão grande de serem explorados que, a meu ver, ignorá-los seria quase um crime de responsabilidade. No entanto, entendo o cara ermitão, aquele que quer se alienar da realidade social e política do país — quem nunca… — todavia, sempre digo, o preço da covardia dos bons é a ascensão indiscriminada dos safados (parafraseando, malemá, a famosa frase atribuída a Edmund Burke).
Lembro-me hoje de uma conversa que tive com um bom liberal brasileiro em 2022, talvez um dos que mais conhecem os meandros da política de Brasília por sua atuação de longa data como assessor na Câmara dos Deputados, um grande cientista político. À época, ele me dizia que na democracia moderna havia uma alternância natural no exercício do “poder duro”, isto é, aquela atuação política que, por vezes, extrapola — sob interpretações canalhas — as regras estipuladas nas constituições e demais códigos, e que, neste momento, era a vez de o Judiciário brasileiro esticar essa corda. No entanto, ponderava ele, isso logo deveria retroceder, pois os demais poderes naturalmente forçariam o pêndulo ao equilíbrio natural. Justiça seja feita, ele não falava com ar de concordância com os atos do STF e do TSE, mas antes como uma espécie de zoólogo que analisava imparcialmente um animal estranho resgatado. Seria um daqueles casos de explicação erudita de alguém que julga possuir uma gnose diferenciada sobre o assunto, um conselho de especialista com referências que aclamaria as ânsias de um gordinho afoito, se não estivesse tão errado em sua leitura e pressupostos.
Os cientistas políticos, quase todos, sofrem de uma espécie de positivismo endêmico — ainda que não saibam disso, ou não queiram assumir. Eles tendem a ler a política não através da imprevisibilidade humana e pela capacidade única que as ideologias têm de angariarem fiéis, adaptarem projetos e destilarem venenos corruptores na estrutura natural do poder e nos valores comuns da civilização. Eles mecanizam a realidade política e falam dela, quase sempre, como um engenheiro de máquinas falaria das engrenagens e fiações de um aparelho industrial; mas a política tem camadas mais profundas e nada robóticas que precisam de análises ontológicas, e psicológicas até, antes desses checklist de notas de rodapés, ações políticas e tendências esquematizadas que os cientistas políticos tanto adoram.
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Quando Thomas Sowell escreveu Os Ungidos, lá em 1995, ele já percebia que havia um movimento político no Ocidente, um movimento que visava a deixar as decisões sociais cada vez mais nas mãos de poucos especialistas; sabia o negão do Harlem — um dos maiores pensadores vivos — que olhar a sociedade somente como camadas de ações programadas, ou como um manual de geladeira onde um passo sucede naturalmente o outro, não ajudaria a entender o processo de perda constante e gradativa de liberdade individual e social na civilização ocidental nos últimos 60 anos. Sowell, há 29 anos, entendeu, por exemplo, que havia uma tendência ideológica no Ocidente de judicializar a democracia, pois a judicialização dispensava a penosa e morosa via do debate político na sociedade e câmaras representativas, excluindo do jogo aquelas opiniões mais conservadoras que constantemente atravancam o progressismo e a criação de salas seguras para os autoritários especialistas ditarem suas agendas; um juiz, respaldado pelo presidente ou primeiro-ministro de ocasião, com apenas uma canetada poderia, então, instaurar uma lei travada na Câmara legislativa, caçar mandatos de desafetos, mudar jurisprudências, substituir ordenamentos internos das casas representativas, prender deputados, senadores, militares, ou seja, governar um país sem precisar dar satisfação. Bastaria ao ungido de momento uma narrativa corroborada na sociedade — geralmente veiculada pelos grandes conglomerados de mídias que, obviamente, esperam gozar de benefícios dessa judicialização por meio de suas obediências incontestes —, respaldo de parceiros de poder e a apatia covarde dos comandados.
“Os ungidos”, não obstante, não seriam apenas juízes, ainda que eles tenham uma facilitação à tirania devido ao poder natural do que gozam em suas funções, mas também todos aqueles que se arrogam especialistas das vidas alheias, que tentam padronizar e/ou mudar a opinião popular a fim de enfiarem a sociedade em suas caixinhas ideológicas. Eles agem e pensam ser alguma espécie de profeta político, alguma espécie de libertador; até aí, nada de novo no front. Fidel, Mao e Lênin agiam e pensavam assim. A diferença agora é que isso se tornou pandêmico, de alguma maneira muitos pensam ser especialistas de tudo, e por meio de seus smartphones, nas plataformas diversas das redes sociais, ditam regras e militam pelo cancelamento de pautas e pessoas que não se encaixam em suas religiões políticas. Unindo força a uma agenda específica de poder, ou corroborando o ativismo autoritário de ungidos mais elevados, eles pensam ser melhores e mais virtuosos, e por isso dotados de uma benção diferente para guiarem a humanidade a alguma perfeição qualquer: a ausência de preconceitos, igualdade econômica e de gênero, ou até mesmo uma parúsia política de bem-estar social “unicorniano”.
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A consequência, afirma Sowell em outro ótimo livro, Em Busca da Justiça Cósmica, é o sufocamento dos indivíduos, a morte da liberdade e da participação sadia das pessoas no debate social, afinal, o primeiro a morrer num processo de autoritarismo autorizado é a liberdade de debater francamente assuntos diversos. Quer saber se você vive em uma sociedade autoritária, avalie o temor real que há em opinar ideias que contrariem a visão do poder vigente, se o retrogosto do medo do cancelamento, ou até mesmo da prisão, se fizer presente, você está sob um estado de autoritarismo; se jornalistas são punidos por opiniões, ou presos em aeroportos para serem submetidos a um interrogatório político digno de União Soviética, tal como ocorreu com Sérgio Tavares, jornalista português detido ao desembarcar no Brasil para cobrir os protesto do último domingo em São Paulo, sim você está em uma sociedade autoritária, quiçá até, já ditatorial.
Em Os Ungidos, Sowell nos encoraja a uma ação contra a cultura do especialismo político, uma contrarrevolução ordenada em oposição aos meios que tentam excluir os indivíduos da vida pública, que visam a criar espaços seguros de comando ditatorial da sociedade para os poderosos.
Por vezes, parece-me que Sowell, ao escrever, lá em 1995, Os Ungidos, estava observando o Brasil atual. Hoje o Brasil está cercado de ungidos que falam com propriedade sobre tudo, que encarnam o espírito da justiça social e ditam regras a esmo, fazendo com que todos se dobrem sem questionamentos às ideologias que carregam; hoje o Brasil é guiado e judicializado por ungidos de toga, que fazem literalmente o que quiserem sem oposição real. Por fim, se tem um livro atual e urgente para o brasileiro contemporâneo esse com certeza é Os Ungidos, um texto que está para além de indispensável, deveria ser antes o livro de cabeceira do homem comum que não aceita a mordaça e nem as algemas ditatoriais de poderosos arrogantes.
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Nesse livro, Thomas Sowell, descreve na década de 60 do século passado o que o Brasil passa hoje.
Os ungidos, a elite “pensante” que acredita saber mais do que bilhões de pessoas menos esclarecidas e virtuosas do que eles.
Uma boa leitura que demostra ser cíclica a engenharia do mal (idiotas, psicopatas, prepotentes, …)!