Escrever sobre Stephen King é sempre difícil no meio conservador, não tanto pelo autor, mas pelo fã-clube que ele angariou e pelos haters que são tão fiéis quanto os primeiros. King não é lá tão conservador como alguns esperam, assim como não é tão progressista como outros queriam — daí já podemos extrair a histeria. Se você acompanha esta coluna, já conhece algumas posições que eu defendo com certa constância por aqui, como a de que os clássicos deveriam ser, sim, os nossos nortes literários, com a condição, todavia, de que ler clássicos não se torne uma seita intelectualista e que os críticos literários, por vezes, são apenas “cricris” literários, e não bons guias — não raro se escondem em academicismos tolos e psicologizações desnecessárias que acabam desmotivando a leitura ao invés de promovê-la e elucidá-la.
Uma máquina de produzir best-sellers, King é hoje um dos autores de maior sucesso literário no mundo. Pelo menos metade de suas obras foi transformada em filmes ou séries. Apostando quase sempre nos gêneros de suspense e terror — apesar de escrever em outras áreas —, tudo que ele assina é quase sucesso imediato. Chega a ser impressionante. Nos blogs e grupos literários dos quais eu participo, isso gera uma mistura de admiração, mas também de críticas: “autor de encomenda” e “emprestador de nome”, em alusão à prática de comprar livros de ghostwriters apenas para assinar como autor, uma espécie de fordismo obscuro do mundo literário mercantil que não posso confirmar que King seja adepto.
Pois bem, há mais ou menos um ano resolvi comprar alguns livros do autor no saldão de R$ 5,99 da Submarino com a meta de finalmente adentrar ao famigerado mundo sombrio dos livros de King; o primeiro que li foi Love: a história de Lisey; o segundo, Novembro de 63; e, semana passada, terminei o terceiro, Mr. Mercedes (o primeiro da trilogia Bill Hodges). O primeiro achei arrastado e confuso, com um suspense criado para dar conta de alguma mensagem ensaística do autor; o segundo achei genial, um “suspense de época” — sei lá se na cartilha de bons críticos literários existe tal termo — que parece um bom filme de ação transcorrendo entre as páginas de forma célere e cativante; e o último é um romance policial digno de ser lido, mas nada além disso.
Não li ainda os clássicos de King, como It: a coisa, ou Misery, ou The outsider. No momento, estou no meio de À espera de um milagre, um livro chocante na sensibilidade e nas descrições psicológicas. Chocante pois é um livro maduro em todos os sentidos até aqui. Quando me lembro, por exemplo, de Mr. Mercedes, um livro com um certo nível de pedágio ideológico, pressa descritiva e horrores pré-fabricados (nada disso muda o fato de ter sido uma boa leitura), parece ser literalmente outro autor.
Na verdade, Stephen King é um autor complicado mesmo: teve sérios problemas com drogas, escrevia literalmente para comer, o que, de certa forma, Dostoiévski também fazia, mas ok, não há comparações… Desculpem-me. Não raro terminava obras chapado e, no outro dia, tal como uma psicografia, não se lembrava de tê-las escrito. Diz o autor que se recuperou completamente, que está limpo há anos, o que interlocutores, paparazzis e fãs norte-americanos que o acompanham com certa cara de pau confirmam.
Todavia, há um outro livro dele que li há três semanas e não inclui na listagem acima pois é um livro de não ficção. Sobre a escrita: a arte em memórias é um livro de memórias e ensaios sobre como Stephen King escreve e quais dicas universais da arte ele compartilha para aqueles que querem começar no ramo. E, vejam, é um livro profundo, de alguém que não só conhece o que faz, que é dono de um talento bizarro para escrita, de uma mente imaginativa quase indecente — no bom e no mau sentido —, um livro que literalmente me fez respeitar mais o autor e me afastar das críticas papagaiescas.
Alguém que passa doze horas escrevendo com acuidade e disciplina admiráveis, que busca inspiração em clássicos e na observação real do cotidiano, transformando tudo isso em textos ficcionais de valor real, cá entre nós, não pode ser um escritor comum. As críticas justas a King, pelo que sondo de leitores sérios e extraio das minhas próprias percepções, se direcionam ao fato de ele ser um autor irregular; nem sempre escreve um ótimo livro, o que o afasta, na minha visão, da prateleira dos autores brilhantes de nossa era. Não tem como colocar Stephen King na prateleira de William Faulkner, Fiódor Dostoiévski e Cormac McCarthy, por exemplo. Mas definitivamente é um autor a se respeitar e considerar ler. Harold Bloom que me perdoe…
Ou seja, meus caros, eu escrevo esta coluna hoje para descascar o muro de um preconceito bobinho em nosso meio mais conservador, o de que ler Stephen King é perda de tempo. Muitos que dizem só se importar com clássicos e “leituras nobres”, que carregam no sovaco a Odisseia e Eneida para mostrar seu pedigree intelectual, na verdade padecem geralmente de dois males contemporâneos que eu já começo a catalogar aqui: 1) a “síndrome da babá literária” que acomete aquele que só lê o que seu crítico ou influencer diz que é bom, que espera de seu curador/sugar daddy literário o imprimatur de obra alvejada para poder deitar tranquilo os seus santificados olhos e mentes sobre os escritos de um bom autor; e 2) a “síndrome do leitor correto”, observada em quem acha que enquanto não ler todos os clássicos dignos da Terra, não pode nem sequer tocar em livros de calibre intelectual menor, ou seja, é o tipo de intelectualismo dispensável não só na literatura, mas na vida.
King é bom sim, ainda que haja outros muito melhores, e lê-lo não afetará seu acesso à fila da comunhão no domingo nem deixará sua alma literária impura. Leia King e outros, como J.K. Rowling, Jöel Dicker e Suzanne Collins, seja para recomendá-los, criticá-los ou esquecê-los depois da última página. Essa castidade literária que certos círculos e clubes de leitura acabam pregando, uma espécie de curadoria sacrossanta, mais impede o conhecimento e a expansão literária do que os promove.
Para finalizar, gostaria de contar uma lembrança da última Bienal do Livro, da qual participei como editor expositor. Em uma das minhas andanças pelos galpões do Riocentro, uma garota de seus quatorze anos me interpelou, talvez pelo meu crachá diferente, e me pediu duas dicas de livros clássicos. Fiquei tão feliz que mal pude conter meu sorriso. Não deixei de notar que ela carregava no braço pelo menos uns cinco livros bem “de adolescentes”, daqueles em que vampiros brilham, adolescentes se rebelam por algum amor estranho. Indiquei Emma, de Jane Austen, Oliver Twist, de Charles Dickens, e Guerra sem fim, de Joe Haldeman. Como bom conservador, me propus a pagar pelos livros, o que a fez ficar muito feliz.
Moral da história: está tudo bem se você quiser ler Crepúsculo e Emma. Antes de mais nada, desligue o celular e a televisão, gastem tempo e olhos entre as páginas. Daqui a algum tempo, fruto de uma natural razão valorativa e gradativa, bons leitores vão procurar coisas mais substanciais — assim espero. Mas, se não procurarem, paciência. A vida é de cada um, e cada um lê o que quer, no fim das contas.
O primeiro passo para um bom pai, professor e tio conservador fazer com que pessoas se interessem por livros é deixar de ser chato, lidar com o que se tem no momento, ao mesmo tempo que prepara o que há de melhor. Assim como na vida real, eu confesso gostar de um bom vinho, mas também de esfihas do Habib’s; na vida real, hoje estou lendo, literalmente, Paraíso Perdido, de John Milton pela manhã e de noite, À Espera de um Milagre, de Stephen King.
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Excelente texto!
Eu já li diversos livros do Stephen King e adoro, é um ótimo passatempo ma também já li Gogol, Dostoiéski, Tolstoi, entre outros
Adorei esse texto! Concordo totalmente com o autor. Já li muitos livros infantis, bobos e ruins, é isso não me afastou de Dostoiévski ou Júlio Verner.