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Edição 04

A covid-19 não é a única ameaça mundial

As medidas de política econômica, os endividamentos, a impressão de papel-moeda sugerem o aprofundamento de uma crise que já será prolongada mesmo sem esses anabolizantes

Bruno Garschagen
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Estamos vivendo uma situação dramática em vários níveis. Às consequências mais evidentes e percebíveis da pandemia (isolamento, infectados, mortos, endividamento e/ou fechamento de empresas, desemprego, fome), somam-se outras gravíssimas: o atestado do fracasso da classe política, a ascensão da tecnocracia como instrumento ideológico para controlar a sociedade, o aumento do intervencionismo estatal e os ataques às liberdades. Esses quatro elementos constituem aquilo que o jurista José Pedro Galvão de Sousa definiu como o Estado Tecnocrático em seu livro homônimo.

O Estado Tecnocrático, segundo o jurista, se caracteriza “pela manipulação do poder pelos especialistas ou homens habilitados a conceber e pôr em prática os planos segundo os quais deve ser conduzida a administração”.

Os técnicos muitas vezes nem estão no topo da cadeia de comando, mas podem, em razão de eventos específicos como essa pandemia, assumir o controle político da situação pelo aspecto técnico da discussão. E, num mundo onde são raros os “líderes políticos com capacidade para conduzir sua sociedade combinando política e técnica, o apelo dos especialistas se torna maior”. Assim, ganham relevância no debate e poder na política aqueles que se apresentam ou que são vistos como técnicos capazes de oferecer respostas a um problema para o qual ainda não há respostas.

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Numa pandemia, o fracasso das elites, o tamanho do Estado e a complexidade da administração pública só aumentam a sensação de que é preciso recrutar mais e mais técnicos para planejar e executar as tarefas, para, conforme Galvão de Sousa, substituir o governo dos homens pela administração das coisas. O jurista não põe em causa a utilidade dos tecnocratas, mas observa que eles devem estar “subordinados à orientação superior” do homem público, que tem uma visão arquitetônica e é capaz de exercer “a função nobilíssima de governar os homens”.

É bem provável que não vejamos com frequência esse tipo de líder pela enorme dificuldade de criar elites naturais oriundas de grupos orgânicos como a família para formar homens vinculados à terra, às tradições, às comunidades.

Desgraçadamente, hoje só temos o técnico, a tecnocracia, e não uma elite política digna e capaz de orientá-los.

O apoio de políticos à ascensão da tecnocracia pode ser explicado por ingenuidade, pela sensação circunstancial de impotência operacional diante de eventos como pandemias, ou até mesmo por instinto de preservação ao conceder parte do poder para manter-se no poder. Sabedor da própria falência da classe política da qual faz parte, o político apela para os técnicos a fim de  “satisfazer aos ideais de competência e eficácia” que lhe faltam.

E foi fortalecendo o Poder Executivo e usando a opinião dos técnicos, incluindo os da Organização Mundial da Saúde, que líderes políticos mundo afora ordenaram o isolamento social, o fechamento do comércio, o roubo de material de empresas privadas (usando o eufemismo confisco ou requisição) e passaram e vigiar o movimento das pessoas e controlar o preço de produtos (do álcool em gel, por exemplo). Quem diverge é tratado como inconsequente; quem descumpre é punido (de multas a prisão).

Trata-se da mais dramática ampliação do poder estatal desde a Segunda Guerra Mundial, segundo trecho da reportagem “The state in the time of covid-19”, publicada pela revista inglesa The Economist em 26 de março. O texto também informava que, historicamente, a seguir a crise, o Estado não abre mão do poder e dos mecanismos de controle que passou a ter.

Pelo temor de que a situação piore, a sociedade aceita o aumento de poder estatal e da coerção por considerar válida a justificativa político-tecnocrática segundo a qual o Estado é a única instituição capaz de mobilizar rapidamente os recursos financeiros e logísticos.

Porque o vírus foi espalhado mundialmente numa velocidade espantosa, não houve nem tempo — e talvez nem interesse — de debater o crescimento do poder estatal para verificar suas consequências imprevistas e definir seu prazo de validade de uma forma que impedisse sua continuação indeterminada.

O combate à covid-19 é similar ao de uma guerra, e ninguém hoje é capaz de saber quanto tempo será necessário para vencer a pandemia.

Por essa razão, o apelo do discurso intervencionista é maior e quem levanta esse debate é criticado. Outro problema é que, para manter essa estrutura de combate em funcionamento, minimizar os impactos econômicos e ajudar quem perdeu empresa, emprego ou está passando fome, o big government será mantido com mais poderes e responsabilidades, com dívida pública mais alta e impostos maiores, como alertou a própria Economist, que errou ao defender sua necessidade para combater a pandemia. O Estado de bem-estar social hoje existente — criado após a Segunda Guerra — assumirá uma dimensão ainda maior e não voltará ao estágio anterior ao novo coronavírus.

Ainda há gente influente que se aproveita deste momento de fragilidade para defender um big government local ou big government global, ambos com amplos poderes para fazer o que for preciso internacionalmente em momentos de crise, pandemia etc. São os mesmos que denunciam a morte da democracia pela ascensão ao poder de políticos que rejeitam (Donald Trump, Boris Johnson) e pelas escolhas das quais discordam (Brexit), mas não pensam duas vezes ao defender soluções globais autoritárias.

Dadas as características singulares da pandemia de covid-19, as implicações não recaem somente na economia e na política, mas na vigilância dos indivíduos com uso da tecnologia e, portanto, numa liberdade vigiada. E quando um governo tenta recuar nas medidas intervencionistas, como o de Boris Johnson no Reino Unido, é acusado de ter intervindo pouco e atrasado.

Eis o drama: o vírus do Estado Tecnocrático infecta de forma tão rápida quanto a covid-19.

Passada a crise, os políticos, tecnocratas, servidores e a parcela da sociedade com mentalidade servil farão de tudo para impedir que o sistema volte ao statu quo ante e que os poderes estatais voltem a ser limitados. Além disso, as medidas de política econômica, os endividamentos, a impressão de papel-moeda sugerem o aprofundamento e o prolongamento de uma crise que já será profunda e prolongada mesmo sem essa injeção de anabolizante.

Em seu livro Poder — História Natural do seu Crescimento, Bertrand de Jouvenel mostrou que é da natureza do Estado expandir-se. Na pandemia atual, uma vez concedido poder ao Estado — a esse Estado Tecnocrático dominado por técnicos que passaram a ter poder político —, estaremos reféns das justificativas técnicas e da engenharia social consentida. Quando nos dermos conta, não haverá mais nada a perder porque não haverá mais nada por que lutar.

 

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Bruno Garschagen é cientista político, mestre e doutorando em Ciência Política e Relações Internacionais; professor de Ciência Política, escritor e autor do best-seller Pare de Acreditar no Governo e do livro Direitos Máximos, Deveres Mínimos — O Festival de Privilégios que Assola o Brasil, ambos publicados pela Editora Record.

9 comentários
  1. Natan Carvalho Monteiro Nunes
    Natan Carvalho Monteiro Nunes

    Muito bom artigo, Bruno.

  2. Kleberth Santana
    Kleberth Santana

    fantástico o artigo Garschagen. Certamente, pela profundidade e volume de informações, voltarei a lê-lo. Abraço.

  3. Marcelo Dos Santos Pereira
    Marcelo Dos Santos Pereira

    Espetacular o texto!

  4. Rogério Antonio Gonçalves
    Rogério Antonio Gonçalves

    Bruno vc só ficou no aspecto do ganho do poder do Estado, então podemos complementar, com todo o respeito, e afirmar que o totalitarismo irá ressurgir e todos sabemos o resultado: guerra. China e Rússia estão preparadas e se preparando, seus satélites estão se movendo. Os EUA e a Europa estão debilitados e, possivelmente, por serem democráticos, desviarão seus recursos para acolher o povo, o que não é do feitio de seus inimigos. Então eu acredito que ao final da covid19 teremos uma grande guerra na tentativa de redefinir as fronteiras e os mercados. Afinal a Europa e os EUA e o resto não irá contratar com a China como antes. Eis o que vejo, com os meus respeitos.

  5. Matheus Vasconcelos Gomes
    Matheus Vasconcelos Gomes

    E segue a falência da cultura brasileira produzindo seus efeitos nefastos. Desde o golpe da república, perdemos as estruturas partidárias que demonstravam capacidade de evoluir. Assim estamos de período autoritário em período autoritário, sem um poder moderador para proteger a administração pública das mãos tanto de políticos medíocres, quanto de técnicos soberbos. Nossa única ferramenta é a manifestação constante de insatisfação e repúdio aos vícios desta classe que diz “representar” o povo.

  6. Otacílio Cordeiro Da Silva
    Otacílio Cordeiro Da Silva

    Do alto de minha condição de leigo em todos estes assuntos, estimo este texto como perfeito. Mas temo dizer que não vejo ninguém especialista em nada, ou, no máximo, o foi até ontem. Hoje talvez não mais. Se o mundo agora caminha para as mãos desses sujeitos, como sugere o texto, então só posso imaginar que estaremos perdidos. Estamos saindo das mãos dos arrogantes (os políticos) e caindo nas mãos dos soberbos (os técnicos). Que o Senhor tenha misericórdia de nós.

  7. Luiz Antônio Alves
    Luiz Antônio Alves

    Nota 9,5. Excelente. Agora que os governadores e prefeitos assumem uma posição de responsabilidades nunca antes vistos é que nos deparamos pela falta de preparo (competência) e conhecimento dessas figuras que se dizem “eleitos pelo povo”. Veja que a maioria não sabe o que significa “cadeira produtiva” e mandam fechar tudo. Aí, um ex-aluno meu no face disse que trabalha numa empresa especializada em produtos de vidro sensível, como cilindros e ampolas para laboratórios clínicos e também indústrias químicas e públicas que cuidam de serviços de água e esgotos limpos. Como o governador mandou fechar tudo ele perguntava se ele deveria ir até a empresa ou ficaria em casa. Noutro, o amigo dizia que trabalhava numa fábrica de mamadeiras e chupetas para crianças. E outra dizia que trabalhava numa pequena indústria de confecções de roupas infantis, toquinhas, luvinhas, casaquinhos (aqui na serra gaúcha é mais frio) e também pedia se a empresa estaria ou não em atividade. Todos eles ficaram naquele dilema: o que é atividade essencial?Enquanto pensavam, eram demitidos.

  8. Augusto Caparica
    Augusto Caparica

    Brilhante.

    1. Eric Kuhne
      Eric Kuhne

      Perfeito. É como na guerra, dá-se voz aos generais, almirantes, agências de espionagem, etc mas quem define as ações a tomar é o mandatário maior do país. O problema é político mesmo, pois a maioria dos mandatários se esconde atrás dos especialistas/técnicos e têm medo de contrariar a opinião pública (induzida pela grande mídia).

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