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Katherine Maher e o livro The 1619 Project | Foto: Montagem Revista Oeste/Wikimedia Commons/Divulgação/Shutterstock
Edição 215

O culto à ‘minha verdade’

É só uma questão de tempo até que a liberdade de expressão seja limitada para proteger o público de fatos potencialmente prejudiciais

Frank Furedi
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Nunca é um bom sinal quando as elites culturais de uma sociedade começam a enxergar os fatos como algo inconveniente. Quando figuras de destaque na mídia descrevem a verdade como um obstáculo para “fazer as coisas acontecerem”, você sabe que está em sérios apuros.

Essas são as palavras de Katherine Maher, a nova CEO da National Public Radio (NPR), dos Estados Unidos. Durante uma palestra para a plataforma TED em 2021, quando ainda era CEO da Wikimedia Foundation, que é dona da Wikipedia, Maher declarou:

“Nosso respeito pela verdade pode ser uma distração que está prejudicando a busca por um terreno comum e por fazer as coisas acontecerem. Não quer dizer que a verdade não exista, ou que a verdade não seja importante… [mas] uma razão pela qual temos crônicas tão gloriosas da experiência humana e de todas as formas de cultura é porque reconhecemos que existem muitas verdades diferentes.”

YouTube video

Isso já era preocupante quando Maher era responsável pela principal enciclopédia online. Mas é ainda mais agora, que ela é a chefe da NPR, lar de alguns dos programas de rádio mais populares dos Estados Unidos. Para Katherine Maher, parece que a verdade e os fatos são um obstáculo para promover a agenda woke da elite. Aliás, ela recentemente suspendeu Uri Berliner, um editor de longa data da NPR, por escrever um artigo denunciando a guinada da estação para a política identitária. Isso o levou a pedir demissão.

A ideia de que existem “muitas verdades diferentes” não é nova. Basta olhar para o surgimento da detestável expressão “minha verdade”. Meghan Markle, duquesa de Sussex, foi publicamente elogiada por Oprah Winfrey na infame entrevista de 2021 por falar “sua verdade”. Como se viu, as “verdades” de Meghan tendiam a diferir das recordações de outras pessoas. No fim das contas, não importava se o que ela dizia era técnica e objetivamente verdadeiro. Suas afirmações eram verdadeiras para quem queria acreditar nelas. Pelo jeito, hoje em dia isso é suficiente para nossas elites culturais.

Entrevista de Meghan Markle a Oprah Winfrey | Foto: Reprodução/YouTube

Repetidas vezes, as principais instituições jornalísticas insistem que não se pode deixar que fatos incômodos atrapalhem as narrativas woke de grande importância. Isso nunca esteve tão evidente quanto na tendência atual de reescrever a história — e o principal exemplo disso é o Projeto 1619, do New York Times.

Se não existe uma verdade objetiva, a realidade pode ser criada e inventada pelas elites. Os fatos podem ser revistos ou censurados de acordo com o que nossos governantes julgarem adequado

Lançado em 2019, esse projeto jornalístico de longa duração — que mais tarde foi transformado em vários livros, uma série documental e um currículo escolar — tinha como objetivo rever a história dos Estados Unidos. Alegava-se que os EUA tinham sido fundados não com base nos valores da liberdade e da democracia, mas no racismo. Argumenta-se que o ano de 1619, e não 1776, marca a verdadeira fundação dos Estados Unidos, porque foi quando os primeiros escravos foram trazidos para as colônias inglesas. O projeto insiste que os EUA foram fundados com o propósito de consolidar a escravidão. Os EUA são racistas, afirma, por definição.

O Projeto 1619 é uma propaganda disfarçada de história que abandona descaradamente fatos e evidências. Não que isso pareça importar para seus defensores acadêmicos. Em uma resenha do livro The 1619 Project: A New Origin Story, Sandra Greene, historiadora da Universidade Cornell, admite que o 1619 inclui “erros factuais” e “vários capítulos [que] simplificam, chegando à distorção”. Mesmo assim, ela o elogia e afirma que é um “livro necessário”.

Poster de divulgação da série documental The 1619 Project | Foto: Divulgação

Na mesma linha, Leslie M. Harris, professora de história da Universidade Northwestern, afirma que ajudou a checar os fatos do Projeto 1619 e descobriu que foram cometidos “erros evitáveis”. Suas recomendações, escreve Harris, foram ignoradas pelo New York Times. Ainda assim, ela acredita que os “ataques [dos críticos do projeto] são muito mais perigosos” do que suas imprecisões.

Quando a verdade é vista como algo perigoso, é quase inevitável que ela seja suprimida. É só uma questão de tempo até que a liberdade de expressão seja limitada para proteger o público de fatos potencialmente prejudiciais. Ketanji Brown Jackson, juíza da Suprema Corte dos EUA, recentemente expressou essa visão ao afirmar que os direitos da Primeira Emenda podem estar “engessando o governo federal de formas significativas” em sua luta contra a chamada desinformação. Como sabemos agora, autoridades nacionais têm pressionado fortemente as empresas de mídia social, em especial desde a pandemia, para remover “desinformação” de suas plataformas. Mas, com muita frequência, as informações censuradas mostram ser totalmente verdadeiras ou pelo menos plausíveis. Histórias que foram suprimidas incluem revelações do laptop de Hunter Biden e dos e-mails de Anthony Fauci.

Anthony Fauci, infectologista e ex-conselheiro do presidente americano Joe Biden | Foto: Reprodução

É a isso que a filosofia da “minha verdade” nos leva. Afinal, se não existe uma verdade objetiva, a realidade pode ser criada e inventada pelas elites. Os fatos podem ser revistos ou censurados de acordo com o que nossos governantes julgarem adequado. Precisamos continuar a buscar a verdade pela verdade, antes de perdermos o contato com a realidade por completo.


Frank Furedi é diretor-executivo do think tank MCC-Bruxelas.

Leia também “Navalny expôs a fragilidade do regime de Putin”

9 comentários
  1. Reginaldo Corteletti
    Reginaldo Corteletti

    Em minha opinião, estão querendo criar um “mundo virtual”, onde a verdade é etérea; onde a “verdade” assume a forma desejada pelo sistema.

  2. Reginaldo Corteletti
    Reginaldo Corteletti

    Em minha opinião, estão querendo criar um “mundo virtual”, onde a verdade é etérea; onde a “verdade” assume a forma desejada pelo sistema.

  3. Alzira Conceição Pacheco de Lima
    Alzira Conceição Pacheco de Lima

    Atualmente qualquer idiota esperto se transforma em ídolo de imbecis que se consideram intelectuais. Resta saber o que essas focas amestradas farão com a “verdade” imaginada por eles.

  4. João Cirilo
    João Cirilo

    A coisa anda tão feia que nem mundado um presidente fica melhor. Pelo contrário, tende a ficar pior, vejam-se os casos americano com Trump, e brasileiro, com Bolsonaro. A malta fica mais nervosa, mais tirânica, mais cerceadora da mínima liberdade.

  5. Fábio Rogério Rocha
    Fábio Rogério Rocha

    Se é que já não perdemos a noção de realidade e nem percebemos não é mesmo?

  6. Marcos Sleiman Molina
    Marcos Sleiman Molina

    Essa questão é recorrente na história. Desde priscas eras. Porém, com todo avanço tecnológico, só aprimoramos este velho vício, ao invés de combatê-lo. Nossa natureza, a do homo sapiens, é a mesma de sempre. Coitados dos não sapiens e dos não homo.

  7. Carlos Oswaldo Bevilacqua
    Carlos Oswaldo Bevilacqua

    “Nossas” elites culturais? Seria mais lógico dizer: Certa “elite” – que se autodenomina cultural – adoradora de factoides, vítima da síndrome de cegueira ideológica…

  8. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Quem tem que acreditar ou desacreditar no que tá escrito ou falado em qualquer meio de comunicação é o leitor ouvinte ou o internauta. Governo, Côtes Superiores, Elites Culturais ou qualquer bexiga lixa que se atreve a definir verdade ou mentira, com exceção do presidente Lula que só fala a verdade, começa com a eleição dele limpa e transparente

  9. Stella Maris Falcão Marques Pereira
    Stella Maris Falcão Marques Pereira

    Excelente artigo do Motta .. as minhas verdades !

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