Pular para o conteúdo
publicidade
Representação de três mulheres executadas como bruxas em Derneburg, na Alemanha, em outubro de 1555 | Ilustração: Everett Collection
Edição 188

Bode expiatório

Cada vez que ocorre um evento catastrófico, a maioria encontra uma minoria para culpar. Às vezes isso acontece quase organicamente, outras vezes a turba é conduzida pelo rei em direção à sua vítima

Rodrigo Constantino
-

No começo havia a culpa. Adão culpou Eva, Eva culpou a serpente, e temos sido consistentes nisso desde então. É o nosso pecado original, esta recusa em aceitar a responsabilidade pelas nossas ações. É apenas um sistema embutido que temos para desviar a culpa para outro lugar e tornar mais fácil viver uma vida não examinada. Se a culpa é nossa, então podemos colocá-la em quem quisermos!

Ao longo da história, é apenas nas circunstâncias mais excepcionais que um governante admitirá a culpa. E muitas vezes é isso que torna o líder excepcional — uma disposição para admitir a falibilidade e aprender com ela. Vale para governantes, mas vale também para o povo todo. A criação de “bodes expiatórios” é uma marca da humanidade. É o que mostra Chris Campbell em Scapegoat: A History of Blaming Other People

Talvez gostemos de pensar, depois de ler sobre o sacrifício de “bodes” expiatórios humanos, que superamos práticas tão cruéis. Mas, para o autor, não o fizemos — apenas os métodos mudaram. Por baixo, ainda somos os mesmos seres primitivos em busca de terceiros para culpar por nossos problemas.

Livro Scapegoat, de Charlie Campbell | Foto: Reprodução

A premissa acerca de nossa natureza humana é o divisor de águas aqui: os românticos inspirados em Rousseau acreditam no “bom selvagem”, com uma natureza infinitamente elástica, permitindo que se crie o Novo Homem; já os realistas, mais conservadores, compreendem que a besta selvagem está sempre à espreita dentro de nós, pois somos seres limitados, e precisamos de um mecanismo de incentivos adequado a essa realidade.

Ainda ansiamos por explicações simples para acontecimentos complexos. E não podemos deixar de responsabilizar uns aos outros quando as coisas dão errado. Campbell apresenta sua definição de bode expiatório: “Qualquer objeto material, animal, pássaro ou pessoa sobre o qual são simbolicamente colocados o azar, as doenças, os infortúnios e os pecados de um indivíduo ou grupo, e que é então liberado, expulso com pedras, lançado em um rio ou mar, na crença de que leve consigo todos os males que lhe são impostos”. 

Os seres humanos criaram válvulas de escape para essa realidade, e daí os festivais libertinos. Os romanos realizavam o festival da Saturnália, que era um período de licença geral. Os senhores serviam os seus escravos, e todos os tipos de coisas eram permitidos, desde beber e dançar em excesso até sexo. Depois um indivíduo seria punido, retirando a culpa dos demais.

Representação do festival da Saturnália, em que mestres e escravos se misturavam para celebrar o solstício de inverno, durante o Império Romano | Foto: Wikimedia Commons

De repente, o bode expiatório não é mais um ato ritual, mas um padrão de comportamento; não é mais uma forma de salvaguardar uma comunidade, e sim uma forma de proteger uma ou duas pessoas. Cada vez que ocorre um evento catastrófico, a maioria encontra uma minoria para culpar. Às vezes isso acontece quase organicamente, outras vezes a turba é conduzida pelo rei em direção à sua vítima.

Do século 5 ao 15, pensava-se amplamente que a bruxaria existia. Pode ser difícil para a mente moderna compreender, mas essa crença estava profundamente enraizada e difundida. Nunca nada teria acontecido por acaso, e quase tudo de ruim que acontecia era resultado de bruxaria. Será que melhoramos muito? Quando vimos na pandemia os histéricos culpando os “negacionistas” pelo vírus, isso não foi semelhante à perseguição às bruxas na era medieval?

Quando a peste negra atingiu a Europa, no século 14, em muitos casos a culpa foi atribuída aos judeus, acusados ​​de espalhar a doença e envenenar o sistema de água. De 1348 a 1351, mais de 200 comunidades judaicas foram exterminadas na Alemanha. A judeofobia não é novidade no mundo. “O ódio é a verdadeira paixão primordial”, como diz um personagem do livro O Cemitério de Praga, de Umberto Eco, que faz o alerta de como é perigoso selecionar uma “raça” como bode expiatório para todos os males do mundo — um alerta que é válido e sempre atual. 

Livro O Cemitério de Praga, de Umberto Eco | Foto: Reprodução

Os homens parecem inclinados a crer em teorias conspiratórias que simplificam um mundo complexo e jogam a responsabilidade de nossos problemas para ombros alheios. Se tais ombros forem de um povo minoritário e facilmente identificável, então o trabalho é mais fácil ainda. Se for um povo com relativo sucesso financeiro, mesmo vindo de baixo, aí é bem tentador colocá-lo como culpado por tudo.

Foi dessa forma que nasceu Protocolos dos Sábios de Sião, um conjunto de textos mentirosos que imputavam aos judeus um complô para dominar o mundo. Ele fora forjado pela polícia secreta do czar Nicolau II e ganhou inúmeras traduções pelo mundo todo, ajudando a disseminar o antissemitismo. Em 1921, o London Times descobriu as relações com o livro de Joly, publicado muitos anos antes, e denunciou os protocolos como uma falsificação. Mas o encanto pelas teorias conspiratórias falou mais alto, e o livro foi publicado várias vezes como autêntico, mesmo depois disso. 

Quadro que retrata a peste negra | Foto: Wikimedia Commons

Hitler, em Minha Luta, chega a escrever que os protocolos são verdadeiros, e a melhor prova é que os judeus negam sua veracidade. Para o nazista, quando todos tiverem conhecimento dos incríveis planos judaicos, o mundo estará perto da “solução final”, ou seja, o extermínio dessa “raça” associada a animais. A desumanização do inimigo é outra estratégia eficaz para persegui-lo e exterminá-lo sem tanta culpa na consciência. 

Os “progressistas” são pessoas que se julgam nobres, preocupadas com todas as minorias e até o planeta, mas estão passando pano para quem degola crianças, estupra meninas e mutila idosos

O horror do Holocausto, resultado dessa campanha antissemita intensiva ao longo de décadas, ainda está fresco na memória de muitos. Mas o risco é sempre real, especialmente em tempos de crises, pois os homens são suscetíveis a teorias conspiratórias mirabolantes, e os judeus sempre serão um alvo fácil. Nada mais reconfortante para os medíocres do que crer que seus infortúnios são obra de uma cúpula pequena reunida em locais secretos para construir complôs e dominar a humanidade. É tudo culpa “deles”. E assim os fracassados alimentam o ódio que aquece suas almas.

Os regimes totalitários levaram a tendência do bode expiatório ao extremo: a autodenominada forma de governo perfeita não tolera qualquer forma de fracasso e, por isso, atribui culpas com extraordinária ferocidade. Todo tirano precisa de um inimigo cruel e mortal para justificar seus atos injustificáveis. 

Ilustração de uma mulher sendo executada por bruxaria | Foto: Divulgação

As teorias da conspiração tendem a surgir primeiro entre as classes médias instruídas. Pensemos nos universitários de hoje. São pessoas que preferem acreditar que existe alguma ordem no mundo, mesmo que seja maligna. A alternativa — que o mundo é mais caótico, sem nenhum ser ou organização dominante acima de nós — é demasiado terrível para ser contemplada. As teorias da conspiração nos permitem pensar que somos poderosos.

Ao reconhecermos a nossa própria sombra, tornamos menos provável que a projetemos nos outros. A saída para essa inclinação de transferir culpas é a humildade diante do espelho, admitir que nós também somos imperfeitos e capazes de atos condenáveis. Reparem que são justamente os “progressistas” que se consideram seres maravilhosos que estão relativizando a barbárie dos terroristas do Hamas, pois seus alvos são judeus. São pessoas que se julgam nobres, preocupadas com todas as minorias e até o planeta, mas estão passando pano para quem degola crianças, estupra meninas e mutila idosos. É porque os judeus viraram seus bodes expiatórios, e lhes falta humildade para admitir sua mediocridade e seu ressentimento, que alimentam esse ódio em seus corações.

Mulheres no campo de concentração de Auschwitz | Foto: Domínio Público/Wikimedia Commons

Leia também “A seita dos assassinos”

24 comentários
  1. Diego Vintem
    Diego Vintem

    CONGRATULATIONsss!!!! IT’s amazing, fabulous, fantastic and MARVEL. Help me to open my MIND. QSL TKsss Att.

  2. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Rodrigo Constantino brilhante no uso da história e filosofia para trazer luz aos acontecimentos atuais.

  3. Barbara nogueira porto felicio
    Barbara nogueira porto felicio

    Muito bom Consta. Você, como sempre muito assertivo!

  4. Radamés de Farias Sousa
    Radamés de Farias Sousa

    Uma nota para esse texto Constantino: 1000? 1miljao? Não. Um trilhao? Mas afirmo: para verdade não existe nota. Existe entendê-la, aceitá-la, e, ter s humildade de reconhecer os erros para não repetí-los.
    Parabéns Revista Oeste. Conto com vocês.

  5. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Muito bom, Constantino.

  6. CARLOS ALBERTO DE MORAES
    CARLOS ALBERTO DE MORAES

    Parabéns pela análise Constantino. Coloca num texto um dos maiores problemas dos governantes. Para confirmar tudo que foi dito, temos o atual governo brasileiro, culpando o governo anterior por tudo o que acontece de errado, assumindo para si somente as coisas boas.
    Tenho certeza que na faixa de Gaza é a mesma coisa: o Hamas deve acusar Israel por tudo de ruim e toda miséria de lá.

  7. Ana Cláudia Chaves da Silva
    Ana Cláudia Chaves da Silva

    É tudo muito assustador. Parece que uma loucura coletiva está querendo trazer de volta os horrores da 2 guerra mundial. Que mundo é esse?

  8. Darilda Guimaraes Miranda
    Darilda Guimaraes Miranda

    Constantino, gosto muito de seus textos, sempre. Mas nesse da edição 188 você brilhou mais ainda.
    Obrigada

  9. Ed Camargo
    Ed Camargo

    Após ler este artigo do Constantino, a pergunta essencial que fica, é: Quem governa o mundo?
    Há alguns anos, uma amiga insistiu que fôssemos a uma livraria para que eu pudesse comprar um exemplar de um livro que a fez chorar de tanto rir. O próprio título do livro sugere a fonte de sua diversão: “Nada neste livro é verdade, mas é exatamente como as coisas são”. Publicado em 1994, o livro é uma mistura audaciosa de tudo, desde intervenção alienígena massiva até metafísica. Uma das premissas do livro, se quisermos atribuir-lhe tanta coerência, é que não uma, mas dezenas de raças extraterrestres intervêm atualmente nos assuntos da humanidade. Hoje o livro se tornou um culto clássico.
    Algumas das pessoas que a mídia estabelecida estigmatiza como teóricos da conspiração consideram que qualquer foco dominante em alienígenas é uma farsa cuidadosamente orquestrada e perpetrada para nos distrair de conspirações terrestres muito mais sinistras. Como exemplo, a vitória do Luladrão nas eleições brasileiras.
    Tudo isto levanta a questão: quem dirige o mundo e as questões relacionadas, quem ou o que os motiva e qual é o seu objetivo? Levantar a possibilidade de envolvimento alienígena ajuda a esclarecer esta questão. Se os extraterrestres estivessem aqui e influenciassem o futuro da humanidade sem interferir através da conquista aberta, a quem eles abordariam?
    Fazer a pergunta “quem governa o mundo” desta forma hipotética não requer uma teoria da conspiração. É uma pergunta simples, que vale a pena perguntar. Onde está mais concentrado o poder de alterar o destino humano?
    Tentar responder a isso inevitavelmente nos leva à toca do coelho. Mas abster-se de perguntar é agir como se isso não importasse, quando é indiscutivelmente a única coisa que importa.
    É seguro assumir que o mundo é apenas um miasma caótico de facções, avançando rumo ao futuro, ou que, se não for, as pessoas responsáveis estão a agir no nosso melhor interesse?
    Na tentativa de compreender quem está no auge do poder global existe teorias de conspiração que colocam essas 14 familias no topo: 1 – Rothschild, 2 – Bruce, 3 – Cavendish (Kennedy), 4 – Medici, 5 – Hanover, 6 – Apsburg, 7 – Rupp, 8 – Plantagenet, 9 – Rockefeller, 10 – Romanov, 11 – Sinclair, 12 – Warburg, 13 – Windsor, -14 – DaSilva”
    Explorar a questão de quem ou o quê opera de forma invisível e, no entanto, determina em grande parte o nosso destino colectivo pode ser uma missão tola, mas isso não significa que eles não existam. Talvez esta hierarquia global, caso existisse, tenha evoluído naturalmente e sem a intervenção de alienígenas ou a inspiração de Deus lutando contra as tentações de Satanás. Mas independentemente da forma exata como o poder é distribuído aos níveis mais elevados, ou se está certo ou errado, ele está cada vez mais concentrado nas mãos de indivíduos e instituições de elite, e preservar a concorrência entre eles é uma das únicas formas pelas quais podemos esperar manter quaisquer liberdades, ou mesmo “ilusões de liberdade”, que nos restem.
    Então talvez nenhum dos detalhes possa ser conhecido, mas isso não significa que as coisas não sejam exatamente como são devido a interferência de um “Mastermind”.
    Hoje vivemos em nosso país uma teoria de conspiração, ou como poderiamos objetivamente explicar com tanta gente inteligente que temos, acabarmos com um charlatão falastrão semi-analfabeto como nosso líder e tomando decisões por todos nós, que diretamente afetam nossas vidas, nosso bolso, nosso futuro e o futuro de nossas filhos e de nosso país?

  10. MB
    MB

    O parágrafo sobre os ‘Protocolos dos Sábios de Sião’ é histórico e está perfeitamente colocado! O grande crítico brasileiro Anatol Rosenfeld, denunciou a farsa num livrinho dos anos 1970. ‘As Mistificações dos Protocolos dos Sábios de Sião’. Que satisfação vê-lo citar perfeitamente as mentiras antissemitas responsáveis por tantos crimes hediondos! Obrigado Consta!

  11. MNJM
    MNJM

    Parabéns Consta pelo texto. Impedido de vir ao seu país por pura tirania. Inacreditável não se pode pensar diferente e fazer criticas aos semideuses. Que país é esse??

  12. FERNANDA MARIA GURGEL SALLES
    FERNANDA MARIA GURGEL SALLES

    Simplesmente perfeita! Me identifico muito com seus textos, parabéns!

  13. Luciana Mendes Teichmann
    Luciana Mendes Teichmann

    Parabéns Consta pelo texto! Muito bom, um abraço

    1. Zulene Reis
      Zulene Reis

      Como sempre, texto perfeito, querido Consta! Amanhã estarei te escutando no Programa 4 Por 4.

  14. Uncle Sam
    Uncle Sam

    Quer me convencer que o mundo não possui uma regência de um pequeno grupo? Então o complô das vacinas foi “orgânico”, a ditadura WOKE (lacração) não é um movimento mundial bem coordenado?

  15. Antonio Neto
    Antonio Neto

    Que texto claro e intrigante. Parabéns Constantino!

  16. Adriana Fossa
    Adriana Fossa

    Sempre preciso, Constantino. Meus parabéns, mais uma vez. E, de fato, essa falta virtude dos progressistas: falsa preocupação com as ditas minorias(?), black lives matter, LGTBQI e o alfabeto todo. Acham normal e justificável o que o Hamas fez. Desprezíveis, para o esgoto Disney e toda essa corja que quer reescrever o passado. E distorcer o presente.

  17. SERGIO RODRIGUES MARTINS
    SERGIO RODRIGUES MARTINS

    Corrigindo: simplesmente magistral!

  18. SERGIO RODRIGUES MARTINS
    SERGIO RODRIGUES MARTINS

    Simpleste magistral!

  19. Valdemir Fernandes De Antonio
    Valdemir Fernandes De Antonio

    Constantino, como sempre um texto perfeito, explicando e comentando sobre o assunto que é muito sério.
    Não podemos cair nessas práticas.
    Muito obrigado.

  20. Marcus Vilela
    Marcus Vilela

    Fui só eu ou mais alguém também achou que o desenho ilustrativo da capa de “Scapegoat” é a cara da greta thunberg?
    Em relação ao artigo, o ser humano é realmente mesquinho e covarde. Temos que lutar constantemente contra nossos próprios instintos para nos tornamos pessoas melhores.
    Isso não é nada fácil e por isso mesmo é bom!
    Devemos buscar nossa evolução amparados no que sabemos e aprendemos até agora que foi um legado de nossos antepassados.
    Desconfio que os “progressistEs” não concordam muito com essa ideia… e nem a Greta.

    1. Renato Perim
      Renato Perim

      Parece muito mesmo, Vilela.

    2. Ed Camargo
      Ed Camargo

      A cara na ilustração do livro é da Greta Thunberg, mas o resto é da Janjatudopode da Silva.

  21. Jose geraldo covre
    Jose geraldo covre

    Exelente sua mensagem, alias como sempre
    Brilhante.

Anterior:
Surtos de negacionismo
Próximo:
Terror e democracia: a lição importante
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.