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Foto: Montagem Revista Oeste/Reprodução Redes Sociais/Shutterstock
Edição 174

A mãe, o baile e o discurso

Ficam as três imagens queimando nossas retinas e contaminando o ar de nossa democracia com um cheiro cada vez pior, insuportável

Roberto Motta
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Três imagens marcaram as últimas semanas. Essas imagens, tomadas em conjunto, oferecem uma explicação sobre o Brasil melhor do que a maioria das análises de economistas, jornalistas e juristas. 

A primeira imagem é a de uma mãe.

A experiência da maternidade é poderosa. Nada interessa mais a uma mãe do que o bem-estar dos seus filhos. Não há nada que uma mãe tema mais do que ser separada deles. 

Na República Federativa do Brasil, até bem pouco tempo atrás, nenhuma mãe amorosa, dedicada e correta temeria ser separada de seus filhos por iniciativa do Estado. Isso mudou. Rodou nas redes sociais um vídeo que mostra uma mãe reencontrando seus dois filhos, crianças ainda pequenas. A mãe não consegue parar de chorar. Quem viu as imagens ficou com um nó na garganta. 

A mãe ficara presa vários meses. O pai das crianças, seu marido, ainda está preso. 

Nem o pai nem a mãe cometeram qualquer um dos crimes violentos que são rotina nas ruas do Brasil, como assalto, sequestro, extorsão ou tráfico de drogas. Se tivessem cometido um crime violento, poderiam ter sido libertados já no dia seguinte, graças à instituição da audiência de custódia

Nenhum dos dois estava envolvido em escândalos de corrupção ou desvio de dinheiro público. Nesses casos, em geral, o processo demora anos, com grande probabilidade de prescrição. 

O crime do casal, até onde se sabe, foi manifestar uma opinião política através de manifestação — conduta que não é crime em democracias.

A prisão do pai e da mãe, e de milhares de outros brasileiros, por razões semelhantes, deixou um cheiro ruim no ar da democracia.

A segunda imagem marcante é a de um baile. Uma banda toca no convés de um navio. Pessoas movem seus corpos ritmicamente. Uma dessas pessoas é um dos homens mais poderosos do país. Ele tem a chave para aprovação de legislação na Câmara dos Deputados. 

O homem é um jurista do Estado — poderoso, bem-remunerado e cheio de privilégios. Ele está em um local inapropriado para seu cargo — um evento político

Uma das coisas que ele permitiu — ou promoveu — foi a aprovação, em altíssima velocidade, de um projeto que altera a cobrança de impostos. É uma mudança, feita na própria carne da Constituição, que afetará a vida de todos os milhões de brasileiros por várias gerações. Na realidade, os efeitos são imprevisíveis, porque o projeto não foi discutido adequadamente nem acompanhado de qualquer estudo sério. 

Não houve tempo. Era preciso aprová-lo rapidamente. Por quê?

Há quem diga que a velocidade foi estimulada pela liberação de bilhões de reais em “emendas” parlamentares (“emenda” significa “dinheiro”). Houve quem dissesse que a razão da pressa fora o show no navio. A embarcação tinha hora para zarpar.

Se isso for verdade, foi o show mais caro da história. 

O cheiro ruim aumenta.

Cruzeiro do Safadão | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Na terceira imagem, um homem faz um discurso. O homem é um jurista do Estado — poderoso, bem-remunerado e cheio de privilégios. Ele está em um local inapropriado para seu cargo — um evento político. Suas palavras são inadequadas para sua função. Na maioria das democracias, elas seriam suficientes para sua remoção imediata da posição que ocupa e para o início de procedimentos de responsabilização.

No Brasil, sabemos que nada acontecerá.

Ficam as três imagens — da mãe, do baile e do discurso — queimando nossas retinas e contaminando o ar de nossa democracia com um cheiro cada vez pior, insuportável.

Leia também “Os piores entre nós”

17 comentários
  1. José Renato Santana Borges
    José Renato Santana Borges

    Não se tem mais leis no Brasil, apenas a ordenação dos bandidos, a mesma que gerou a inquisição e as loucuras do nazismo.

  2. Carlos Eduardo F. Rezende
    Carlos Eduardo F. Rezende

    Sem palavras, essas fotos parecem um filme de ficção. Não é possível que o Brasil está nesta situação.
    Acho que eu morri e fui para o inferno.

  3. José Carlos Santos Vieira Graddi
    José Carlos Santos Vieira Graddi

    Eu venho dizendo já há algum tempo: VAI PIORAR. E MUITO.
    As prisões por motivos políticos e por opiniões se tornarão comuns e parece que ninguém quer ver. Todos seguem suas vidas sem perceber que a tragédia se aproxima a passos largos. A VENEZUELA JÁ CHEGOU, mas todos fazem questão de puxá-la para baixo do tapete. Logo, logo, o monturo do arbítrio e da desfaçatez se fará grande demais para que possa continuar escondido…

  4. Otacílio Cordeiro Da Silva
    Otacílio Cordeiro Da Silva

    Muito bem observado pelo autor. Às vezes, alguém precisa ordenar os fatos para que possamos aceitá-los, condená-los ou entendê-los melhor. Das três histórias. a que mais me indignou foi a segunda. E explico porque: A primeira história segue pendente de uma elucidação plausível dos fatos, continuamos no aguardo. Além do mais, penso eu, não se sustenta no médio ou longo prazo. Pelas minhas contas, não sobreviverá às eleições de 2026. A terceira história diz respeito a mais uma estripulia de alguém reincidente nesse ofício, alguém conhecido de longa data. Nenhuma surpresa. A segunda nos revela o descuido do titular de uma mesa por onde trafegam grande variedade de escolhas, processadas à mercê das providências de 200 milhões de cidadãos. A primeira história vai passar, a terceira história já passou, mas a segunda permanecerá insepulta por longa data.

  5. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Difícil se conformar vendo o vídeo desta mãe reencontrando seus filhos. Revoltante!

  6. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    O cheiro de enxofre tomou conta do país e não se sabe o que mais sairá das falas e canetas dos Supremos Imperadores, intocáveis por omissão do Senado na pessoa do senhor Pacheco.

    1. Hans Herbert Laubmeyer Filho
      Hans Herbert Laubmeyer Filho

      Tempos bicudos vivemos todos.

  7. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Tem alguém nesses poderes públicos mais Safadão do que Wellington?

  8. Jorge Luiz Dias Ferreira
    Jorge Luiz Dias Ferreira

    Artigo primoroso! A verdade, nua e crua, do Brasil de hoje.

  9. ELIAS
    ELIAS

    Em seu artigo, Roberto Motta expõe em toda a sua crueza, símbolos que reafirmam as razões para que toda a esperança em um futuro de liberdade e democracia em nosso país seja atirada na lata de lixo.

  10. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Motta, como se manifestam teus amigos militares das FFAA que com certeza estiveram contigo na Secretaria da Segurança do R. de Janeiro no combate aos marginais, vendo toda essa desordem judiciária em nosso pais?
    Não consigo entender porque só o jornalismo da Revista Oeste e da Gazeta do Povo se manifestam contra esta ditadura que enfrentamos, e que por muito pouco nada disto estaria acontecendo. Como pode o iluminado Barroso, futuro presidente do STF dizer em comício público que derrotou o bolsonarismo?

  11. Alcione Magalhães Ferreira
    Alcione Magalhães Ferreira

    Admiro vc,caro Motta.Perfeito o seu artigo.

  12. MNJM
    MNJM

    Ótimo texto. A primeira imagem é revoltante faz parte da ditatura da toga que o país vive.
    A segunda é o nível do Congresso que se vende por dinheiro.
    A terceira é a decadência da Suprema Corte que faz ativismo político. Barroso tinha que ser destituído do cargo mas depende do Presidente do Senado, um capacho do STF que engaveta todos os pedidos de impeachment.

  13. Cícero Ruggiero
    Cícero Ruggiero

    E X C E L E N T E

    1. Roberto de Almeida Augusto
      Roberto de Almeida Augusto

      Parabéns Roberto Motta pelo artigo. Uma síntese da nossa triste realidade.

  14. João Choucair Gomes
    João Choucair Gomes

    Não entendo a nossa passividade em relação ao primeiro tema ( a mãe). Deveria mobilizar até Lulistas (não digo petistas), mas tudo parece aceitável.
    Em relação ao Lira, não ficaria surpreso se o passeio do navio interferiu na festa.
    Já o ministro do “perdeu mané, não amola” e “Nós derrotamos o Bolsonarismo” vai piorar quando chegar à presidência do STF. É um vaidoso incorrigível.
    Como sempre ótimo texto Motta. Parabéns.

  15. David
    David

    É sofrido demais para as pessoas de bem deste Brasil!

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