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Livia S. Eberlin, química analítica criadora da MasSpec Pen, que acelera para poucos segundos a detecção de tecidos com câncer | Foto: Reprodução
Edição 173

‘A caneta ajuda a identificar o tecido tumoral em tempo real’

A cientista brasileira Livia Eberlin desenvolveu um equipamento capaz de detectar, durante a cirurgia, se o câncer ainda está presente

Paula Leal
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Livia Schiavinato Eberlin, 37 anos, nasceu em uma família apaixonada pela área das ciências biológicas. A mãe é técnica em bioquímica e o pai é o cientista Marcos Eberlin, membro da Academia Brasileira de Ciências e titular da Ordem Nacional do Mérito Científico. Formada em química pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Livia mora nos Estados Unidos há 15 anos, para onde se mudou para fazer doutorado. Ela fundou seu laboratório de pesquisa em 2016, hoje sediado no Texas Medical Center, em Houston.

Foi no doutorado que ela começou os estudos sobre o câncer. Ao iniciar sua carreira independente, Livia desenvolveu um dispositivo capaz de analisar um tecido humano e identificar a presença de células cancerosas. A caneta, batizada de MasSpec Pen, tem como principal objetivo certificar, durante uma cirurgia oncológica, que todo o tecido tumoral foi retirado do corpo do paciente. “A caneta serve como um guia para o cirurgião identificar o tecido tumoral em tempo real”, explica. 

Em 2018, Livia recebeu a renomada bolsa da Fundação MacArthur, conhecida como a “bolsa dos gênios”, destinada a profissionais com atuação destacada e criativa em sua área. O prêmio, no valor de US$ 625 mil, é de uso livre pelo bolsista. A cientista também recebeu o prêmio “Nobel de Assinatura”, da American Chemical Society. Atualmente, Livia abriu uma empresa para comercializar a MasSpec Pen e busca investidores para financiar o projeto. De Houston, no Texas, Livia conversou com a reportagem de Oeste por videoconferência. A seguir, os principais trechos.

Você sempre quis ser cientista?

Sempre fui muito curiosa. Meu pai é químico, tive o privilégio de acompanhar como é uma carreira científica [Leia a entrevista de Marcos Eberlin na Oeste]. Pensei em cursar farmácia ou engenharia de alimentos na universidade. Meu pai me convenceu de que a química está em tudo, e eu poderia trabalhar com alimentos, com farmácia. Mas acabei me apaixonando pela química aplicada a questões de saúde.

Livia recebendo seu diploma de graduação ao lado de seu pai, Marcos Eberlin | Foto: Reprodução/Redes Sociais
Por que você foi estudar nos Estados Unidos? 

Quando estava na graduação, fiz um estágio de verão por três meses nos Estados Unidos. Já estava iniciando os estudos no Brasil em espectrometria de massas [técnica que mede a massa em relação à carga de uma amostra para identificar e qualificar moléculas] para diagnóstico, e meu estágio foi nessa área. Finalizei a graduação e decidi fazer o doutorado na Purdue University. Engatei num pós-doutorado em Stanford, por mais três anos, e aprofundei os estudos em estatística e inteligência artificial, também focada na área da saúde e pesquisa clínica. 

Como surgiu a oportunidade de abrir seu laboratório?

Comecei minha pesquisa na Universidade do Texas, em Austin, no Departamento de Química. Fui professora assistente e fiz muita pesquisa com pacientes em cirurgia, em tratamento contra o câncer. Em 2016, decidi começar minha carreira independente e abri meu próprio laboratório. Em 2020, recebi uma proposta e mudei para Houston. Hoje, meu laboratório está instalado no Texas Medical Center, o maior centro médico do mundo, que atende cerca de 10 milhões de pessoas por ano. Meu laboratório conta com 15 colaboradores, entre alunos de doutorado, pós-doutorado, cientistas e técnicos.

O que fez você focar a pesquisa sobre o câncer? 

Minha experiência no doutorado. Comecei a frequentar hospitais, coletar amostras de pacientes e observar a dinâmica dessa relação entre médico e paciente. Gosto muito de pessoas, da interação com o ser humano. Percebi que havia muito para ser feito no tratamento do câncer. Minha pesquisa poderia ter impacto para beneficiar o paciente na prática. Identifiquei uma necessidade grande na área de cirurgia, e achei que havia espaço para uma aplicação da técnica da espectrometria de massas nesse ambiente. 

Livia e equipe acompanham a pesquisa da MasSpec Pen em seu laboratório, no Texas Medical Center, em Houston | Foto: Divulgação/ MacArthur Foundation
O que motivou você a desenvolver um dispositivo para detectar tecido cancerígeno durante a cirurgia? 

A cirurgia para a retirada de tumores sólidos ainda é o que mais cura pacientes com câncer. Quando ia aos hospitais para coletar amostras de tecido com uma caixa de gelo, observei que o processo usado em cirurgias para a retirada de tumores é arcaico. O cirurgião retira o tecido, manda para uma sala, chamada de congelamento, e o patologista avalia se ainda existe célula cancerígena na margem daquele tecido. Esse processo pode levar de 30 a 40 minutos, depende. Enquanto isso, o paciente fica lá, exposto à anestesia e a outros riscos cirúrgicos. Há hospitais onde nem existe esse procedimento de análise do tecido — o cirurgião se baseia na experiência para extrair as células tumorais. Cirurgias malsucedidas podem deixar células cancerígenas no paciente, que podem levar à volta do tumor, à necessidade de uma segunda cirurgia ou até mesmo à incidência de metástase.

Nossa média de precisão é de 96%. No câncer de pâncreas, chega a 99%

Como surgiu a ideia de criar uma caneta para detectar o câncer? 

A técnica da espectrometria de massas permite distinguir tecidos normais dos com câncer, com base no perfil molecular. O que faltava era adaptar uma tecnologia tão complexa, realizada em laboratório, ao ambiente cirúrgico. A caneta faz essa interface e serve como um guia para o cirurgião identificar o tecido tumoral em tempo real. Outra vantagem é que o dispositivo detecta se a região apresenta metástase ou se é só uma inflamação, auxiliando o profissional na tomada de decisão. A preservação do tecido saudável é importante, evitando que o cirurgião retire material em excesso ou desnecessariamente. 

Como funciona o dispositivo, batizado de MasSpec Pen?

Usamos uma técnica de análise química para dar a mesma resposta que um patologista daria. A caneta tem um reservatório preenchido com água. Quando a ponta dela toca o tecido, capta moléculas que se dissolvem em água e são transportadas para um espectrômetro de massa, equipamento que analisa se a amostra é cancerosa ou não. Essa leitura é instantânea.

Caneta MasSpec Pen, que detecta câncer em tecido humano | Foto: Divulgação
Em que fase se encontra o projeto?

Em 2017, publicamos na revista científica Science Translational Medicine o resultado de uma primeira fase da pesquisa, em que analisamos mais de 200 amostras de tecido humano somente em laboratório. De lá para cá, otimizamos o processo e os modelos matemáticos. A tecnologia já está disponível em quatro hospitais em nível experimental, já estudamos mais de dez tipos de cânceres, e analisamos mais de 1,5 mil tecidos tumorais. Em cirurgia, a caneta foi usada com 250 pacientes. Nossa média de precisão é de 96%. No câncer de pâncreas, chega a 99%. Depende do tecido e do tipo de câncer. 

O dispositivo já foi aprovado pelo Food and Drug Administration (FDA)? 

Ainda não. O plano é submeter o dispositivo à análise do FDA até o início do ano que vem. Mas vamos começar a vender o sistema antes da aprovação para segmentos de pesquisa e para aplicações que não são reguladas pela agência. A caneta tem muitas utilidades que vão além da área médica. 

Fachada do Food and Drug Administration (FDA), nos Estados Unidos | Foto: Shutterstock
Quais áreas já se interessaram pelo equipamento?

O agronegócio já demonstrou interesse. O dispositivo pode analisar a qualidade da carne para identificar se o gado é alimentado com pasto ou com grãos, por exemplo. É possível fazer análise de materiais, como o plástico, ou detectar o uso de pesticidas em plantas.

Como você pretende financiar o projeto? 

Fundamos a empresa para desenvolver o equipamento em fevereiro de 2020. Estamos incubados no Texas Medical Center e fazendo apresentações para captar investimentos. Já conversamos com investidores no Brasil e nos Estados Unidos. Como brasileira, gostaria muito de ver a caneta sendo usada no meu país. Aqui, existe certa aversão ao risco com tecnologias médicas, depois do efeito Elizabeth Holmes [a jovem de 19 anos que criou uma máquina portátil que prometia fazer mais de 200 tipos de exames médicos com uma única gota de sangue. Ela se tornou uma das bilionárias mais jovens do mundo, faliu e foi condenada por fraude. Veja o documentário The Dropout, disponível no Star+]. O retorno do investimento demora, porque é preciso passar por todas as etapas de validação científica antes da comercialização. 

Quando a caneta estará disponível no mercado?

Estimamos que o dispositivo, para pesquisa, estará disponível no início de 2024. Para uso em cirurgia, mais uns dois ou três anos.

Você acredita em um mundo livre do câncer?

Acredito em um mundo com ótimos tratamentos para combater a doença e com menos câncer. Mas, livrar-se de vez, não sei se é possível. O câncer tem potencial para se adaptar e a não responder a certos tratamentos. A adaptação molecular ainda é objeto de muito estudo pela ciência. Mas temos sempre que ter esperança.

Livia Eberlin | Foto: Divulgação

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2 comentários
  1. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Parabéns Lívia, vc escolheu a área de Química para realizar sua pesquisa e trabalhar na área de saúde para combater e ajudar a vida de quem tem câncer.

  2. Olavo Fonseca Berger
    Olavo Fonseca Berger

    Orgulho do Brasil, parabéns Lívia!

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