Pular para o conteúdo
publicidade
Prateleira fechada de supermercado, em White River, Mbombela, África do Sul, em 4/4/2020. Produtos considerados não essenciais não puderam ser vendidos, devido a restrições durante a pandemia de covid-19 | Foto: Shutterstock
Edição 163

O que eles queriam dizer com essencial e não essencial 

De tudo o que pensei sobre os anos de lockdown, só agora tive tempo de me debruçar sobre essa estranha distinção entre essencial e não essencial. O que isso significa e qual é sua origem?

Jeffrey A. Tucker.
-

O decreto de dividir a força de trabalho vem de uma agência até então desconhecida chamada Agência de Segurança Cibernética e Infraestrutura, ou CISA, dos Estados Unidos. Ele ocorreu em 18 de março de 2020, dois dias depois de as ordens iniciais de lockdown chegarem de Washington. Trabalhadores e empresários do país todo tiveram de vasculhar as regulações que surgiram do nada para descobrir se podiam trabalhar ou não. Os termos essencial e não essencial não foram usados como poderíamos imaginar. Foi uma forte demarcação de todo o mundo comercial de uma forma não orgânica para toda a experiência humana.  

Selo da Cybersecurity and Infrastructure Security Agency | Foto: Domínio Público

O pano de fundo foi uma longa história e um hábito cultural de usar termos para identificar profissões e suas interações com temas difíceis, como classe. Durante a Idade Média, tínhamos senhores, servos, comerciantes, monges e ladrões. Com o surgimento do capitalismo, essas demarcações rígidas se desfizeram, e as pessoas tiveram acesso ao dinheiro, a despeito de acidentes de nascimento.  

Hoje falamos de “engravatados”, para nos referir a pessoas que se vestem para um cenário profissional, ainda que nem todos usem gravata. Falamos em “classes trabalhadoras”, um termo estranho que implica que os que não estão trabalhando são membros da classe do lazer, um óbvio resquício dos hábitos da aristocracia do século 19. No século 20, inventamos o termo classe média, para nos referir a todo mundo que não é pobre de fato.  

Foi uma combinação estranha, uma bifurcação completa entre o topo e a base. Os que serviam e os que eram servidos. Os servos e os senhores. A classe dominante e aqueles que entregam sua comida

O Departamento do Trabalho dos EUA tradicionalmente recorre ao uso comum e menciona “serviços profissionais”, “serviços de informação”, “varejo” e “hospitalidade”, enquanto as autoridades tributárias oferecem centenas de profissões entre as quais você precisa se encaixar.  

No entanto, o emprego dos termos essencial e não essencial não tem precedente na nossa língua. Isso tem origem numa perspectiva de éthos democrático e da experiência comercial do mundo real, em que tudo e todos são essenciais para todo mundo.  

Ilustração: Shutterstock

Quando trabalhei na equipe de limpeza de uma loja de departamento, me conscientizei profundamente disso. Meu trabalho não era apenas limpar os banheiros — sem dúvida essencial —, mas também recolher os pequenos alfinetes do carpete nos provadores. Deixar um passar podia significar um ferimento terrível para um cliente. Meu trabalho era tão essencial quanto o dos contadores e dos vendedores.   

O que o governo quis dizer exatamente, em março de 2020, quando falou em não essencial? Ele se referiu a salões de beleza, de maquiagem, de manicure, academias, bares, restaurantes, pequenos comércios, salões de boliche, cinemas e igrejas. Todos são atividades que alguns burocratas em Washington decidiram que podiam dispensar. Depois de meses sem cortar o cabelo, no entanto, as coisas começaram a ficar desesperadoras, e as pessoas cortaram o próprio cabelo ou chamaram alguém para ir furtivamente a sua casa.  

Academia fechada devido às restrições impostas durante a pandemia de covid-19 | Foto: Shutterstock

Tenho um amigo que ouviu falar de um galpão em Nova Jersey que tinha um código secreto que dava acesso à porta dos fundos de uma barbearia. Ele experimentou e deu certo. Nem um pio. O corte de cabelo levou sete minutos, e ele pagou em dinheiro, que era a única coisa que a pessoa aceitava. Ele foi e voltou sem contar para ninguém.  

Isso significava não essencial: uma pessoa ou um serviço de que a sociedade podia prescindir em um piscar de olhos. O lockdown imposto em 16 de março de 2020 (“espaços internos e externos em que as pessoas podiam se aglomerar deveriam ser fechados”) se aplicava a eles. Mas não se aplicava a tudo e a todos.  

O que era essencial? Foi aqui que as coisas se complicaram muito. Você queria ser essencial? Talvez, dependendo da profissão. Caminhoneiros eram essenciais. Médicos e enfermeiros eram essenciais. As pessoas que mantêm as luzes acesas, a água correndo e os edifícios em boas condições eram essenciais. Não são pessoas que trabalham num laptop ou no Zoom. Elas precisavam estar lá. Essas profissões incluem o que consideramos empregos da “classe trabalhadora”, mas não todos. Cozinheiros, atendentes de bar e garçons não eram essenciais.  

Protesto de restaurantes e bares em Tilburg contra as restrições impostas pela pandemia de covid-19. Tilburg, Holanda, 3/2/2021 | Foto: Shutterstock

Mas, claro, o governo também estava incluído aqui. Não se pode viver sem ele. A mídia também foi incluída, o que revelou ser de extrema importância no período da pandemia. A educação era essencial, mesmo que pudesse ser realizada on-line. As finanças eram essenciais, porque, você sabe, as pessoas precisam ganhar dinheiro nas bolsas de valores e nos bancos.  

De modo geral, a categoria essencial incluiu tanto os postos “mais baixos” da pirâmide social — lixeiros e funcionários de frigorífico —, quanto os níveis mais altos da sociedade, dos profissionais de mídia aos burocratas.     

Foi uma combinação estranha, uma bifurcação completa entre o topo e a base. Os que serviam e os que eram servidos. Os servos e os senhores. A classe dominante e aqueles que entregam sua comida. Quando o New York Times afirmou que deveríamos ter uma postura medieval em relação ao vírus, era sério. Foi exatamente o que aconteceu.  

Artigo do The New York Times, em 28/2/2020 | Foto: Reprodução

O mesmo se deu com as cirurgias e os serviços de saúde. “Procedimentos eletivos”, o que significa tudo o que pode ser agendado, incluindo checkups, foram proibidos, enquanto “cirurgias de emergência” foram permitidas. Por que não existem investigações reais sobre como isso aconteceu.   

Vamos pensar nas sociedades totalitárias, como em Jogos Vorazes, com um Distrito 1 e todos os demais; ou talvez a União Soviética, em que as elites do partido jantavam luxuosamente, e todas as outras pessoas ficavam na fila do pão. Ou talvez uma cena do filme Oliver! em que os donos do orfanato engordavam enquanto as crianças abrigadas sobreviviam à base de mingau até conseguir fugir para viverem na economia clandestina.  

Parece que os planejadores da pandemia veem a sociedade da mesma forma. Quando tiveram a chance de decidir o que era essencial e o que não era, eles escolheram uma sociedade extremamente segregada entre governantes e as pessoas que tornam a vida deles possível, enquanto todos os demais eram dispensáveis. Isso não foi um acidente. É assim que eles veem o mundo, e talvez seja assim que queiram que ele funcione no futuro.   

Foto: Shutterstock

Não se trata de uma teoria conspiratória. Foi o que de fato aconteceu. Foi o que fizeram conosco apenas três anos atrás, e isso deveria nos ensinar uma lição. Que é contrária a todo princípio democrático e vai de encontro a tudo o que chamamos de civilização. Mas aconteceu mesmo assim. Essa realidade nos dá uma amostra de um pensamento profundamente perturbador e que deveria nos assustar.  

Até onde sei, nenhum dos autores dessas políticas foi levado até o Congresso para depor. Eles nunca tiveram de testemunhar diante de um tribunal. Uma busca no New York Times  não revela nenhuma reportagem sobre essa pequena agência, criada em 2018, ter destruído todas as relações de classe orgânicas que mapearam nosso progresso nos últimos mil anos. Foi uma ação chocante e brutal, mas não mereceu nenhum comentário das classes dominantes no governo, na mídia ou em lugar nenhum.  

O presidente Donald J. Trump assina a Lei da Agência de Segurança Cibernética e Infraestrutura, em 16/11/2018, no Salão Oval da Casa Branca | Foto: Divulgação/Joyce N. Boghosian

Agora sabemos com certeza quem são as pessoas e o que nossos governantes consideram essencial e não essencial; o que vamos fazer sobre isso? Alguém deve ser chamado para se responsabilizar por isso? Ou vamos continuar permitindo que os soberanos gradualmente transformem a realidade da vida sob os lockdowns em nossa condição permanente?  


Jeffrey A. Tucker é fundador e presidente do Instituto Brownstone. Ele também é colunista sênior de economia do Epoch Times e autor de dez livros, incluindo Liberty or Lockdown, e milhares de artigos para a imprensa acadêmica e popular. Tucker trata amplamente de questões sobre economia, tecnologia, filosofia social e cultura 

Leia também “O declínio do patriotismo”

4 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Este período nebuloso precisa sempre ser lembrado. Está gravado em minha memória o dia em que, foi cortar o cabelo, e o cabeleireiro com medo de fazer seu trabalho, por conta de fiscais. Burocratas com sua vida garantida querendo ditar o que é ou não é essencial na vida das pessoas. Vão pagar por isso, cedo ou tarde.

  2. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    Todas as profissões são essenciais, do contrário, deixam de existir, como por exemplo os ascensorista. Exceto em Brasília.

  3. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    O lockdown foi uma dádiva para aqueles que podiam e podem viver em suas mansões com piscinas, Netflix e delivery.

  4. Joviana Cavaliere Lorentz
    Joviana Cavaliere Lorentz

    Parabéns! Reflexão indispensável.

Anterior:
O Woodstock do capitalismo e o país da cerveja
Próximo:
Por que o mundo se voltou contra Israel?
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.