A crise nas livrarias brasileiras é inegável. Das tradicionais Saraiva e Livraria Cultura, às pequenas de todos os nomes, elas enfrentam os titãs dos market places, mais especificamente a Amazon e, outrora, Americanas e sua subsidiária, Submarino. Ao contrário de meus parceiros editores, não vejo a Amazon como um “demônio encarnado do capital estrangeiro malvadão que veio massacrar o capital livreiro nacional”. Trata-se antes do natural movimento de evolução e reinvenção do mercado. E, como nos mostra o cético otimista Nassim Nicholas Taleb, eis a oportunidade de resiliência, reinvenção e criação de novos modelos de negócio nesse setor. Já escrevi brevemente sobre essa crise, e mais de uma vez dei meus dois goles de ideias sobre como reerguer esse panteão de cultura que representa as livrarias físicas.
No entanto, não há como negar que a ausência, tanto factual quanto simbólica, de livrarias em nossas avenidas, ruas e shoppings é um dado muito triste de nossos dias. As livrarias, para aqueles que tentam transcender a mera visão econômica e pragmática dos negócios, e também aquele idealismo abobalhado e militante, significam um lugar de difusão de conhecimento, de importância e comprometimento coletivo — mais do que social — com a busca pela erudição e aperfeiçoamento individual e social — e também de entretenimento, não sejamos tolinhos. Ainda que eu tente me abster de todo romantismo idílico que traz o característico cheiro e a visão das prateleiras abarrotadas de livros, devo concordar com aqueles que veem na ausência de vitrines livreiras e sebos abarrotados de brochuras um dado característico de uma época que produz informações rápidas, entorpecidas de ideologias, na maioria das vezes, dispensáveis. Ainda que o mercado e seu poder de mutação social sejam algo natural em democracias liberais, é dever do homem comum preservar e adaptar as colunas de sua civilização a tais mudanças, e os livros e seus espaços culturais, arrisco-me a dizer, são o cimento de tais colunas. A ausência de livrarias nas ruas é, sim, um sintoma visível de que também jaz, entre nós, um desencanto crescente pelo que importa, um desinteresse pandêmico pelo conhecimento e pela erudição que fizeram do Ocidente um lugar de abertura cultural, crescimento tecnológico, ciências férteis e um pulverizador de liberdades e valores verdadeiros.
Na terça-feira 19, estive em Cruzeiro (SP). Por causa de um tratamento odontológico que minha esposa está fazendo por lá, teria de esperar na clínica umas 2 horas. Sempre que saio carrego comigo algum livro. Naquele dia, contudo, em virtude da pressa da minha amada, esqueci o livro em casa — a saber, Os deuses têm sede, de Anatole France. Tomado por uma angústia muito particular em ficar ocioso sem nada para ler — a não ser as revistas de moda que a clínica oferecia numa mesinha de centro —, perguntei à recepcionista da dentista onde encontraria, na cidade, uma livraria. A moça informou: “Não tem livraria em Cruzeiro”. Interpelei, então: “E sebos”. “Também, não”, respondeu ela. “Não é possível”, retruquei à garota, que naquele momento já estava com uma cara de confusa. Busquei no Google, mas nada a não ser um recinto já fechado chamado Livraria Belas Artes, que, quando ainda estava aberta, era uma papelaria. Saí pela avenida da clínica e questionei no posto de gasolina da esquina se eles me indicariam alguma livraria na cidade. O frentista disse que não conhecia nenhuma, e já morava ali havia 15 anos. Parei em uma cafeteria, repeti a indagação e ouvi a mesma resposta da recepcionista. No final, encontrei uma banca de jornal que vendia cerca de 20 livros. Achei e comprei Contos fantásticos do século XIX, organizado e comentado por Ítalo Calvino, uma revista do Cebolinha para meu filho e um isqueiro para meu cachimbo. Nessa altura, vocês devem estar pensando que essa minha “angústia” é típica de um “pequeno burguês” e que a classe operária não teria tempo para tais esteticismos e moralismos intelectualoides; mas, creia, de fato eu achei aquilo tão assustador quanto triste.
Cruzeiro não é uma cidade exatamente pequena. Conforme o Censo mais recente, de 2020, tem 82 mil habitantes. Há também os típicos problemas de cidade grande. Ela ostenta, por exemplo, o título de uma das mais perigosas do interior paulista, em razão do tráfico de drogas. Em Lorena, cidade dividida de Cruzeiro apenas pela pequena Cachoeira Paulista e a minúscula Canas, tem ao menos cinco livrarias listadas pelo Google Maps e, segundo o mesmo Censo de 2020, 89 mil habitantes. Isso tudo torna a ausência de livraria na cidade de Cruzeiro ainda mais “misteriosa”.
Fui além quando cheguei em casa. Não queria acreditar que realmente não havia sequer uma livraria pequena naquela cidade. Liguei para a Prefeitura de Cruzeiro — que tem um péssimo atendimento ao cidadão —, busquei o responsável pelo setor de turismo, porém, não consegui contato. Por fim, consegui falar com a área de imprensa da prefeitura, que me confirmou, agora oficialmente, que a cidade não possui livraria há pelo menos 20 anos.
Esta crônica ilustra, em campo reduzido, a crise cultural e livreira brasileira, que atravessa inúmeros setores e responsáveis. O país arrasta durante décadas longevas o descaso com o conhecimento erudito. Quando digo “erudito”, refiro-me ao conhecimento clássico de busca pela verdade e compreensão da realidade da existência num plano profundo. A ideologização extremada do país — principalmente nas escolas e universidades — cria indivíduos superficiais e anêmicos de percepção existencial profunda. Ao contrário do que pensava Paulo Freire, a politização da educação cria jovens estafados ante a busca do conhecimento. Quando aprendemos que tudo é política, o mundo se torna chato e desinteressante.
Pessoas rasas leem pouco, e mal quando leem. Lembro-me de um debate que tive em uma escola particular de São José dos Campos (SP) com um sociólogo que tentava me provar que o Brasil, dado à redemocratização e ao acesso facilitado à educação superior “através da administração petista”, teria puxado a população geral ao interesse pela cultura nacional e ao conhecimento científico — em Cruzeiro há mais de uma dúzia de universidades e nenhuma livraria. O sociólogo disse ainda que meu discurso de ataque pessimista à realidade educacional do país era uma “repetição olavista apenas”. Então, eu o desafiei a enfileirar mil adolescentes, de 14 a 18 anos, do ensino médio público e privado de São José dos Campos, e perguntar a eles quantos leram dois desses três livros essenciais de nossa literatura moderna, O triste fim de Policarpo Quaresma, Memória póstumas de Brás Cubas e Olhai os Lírios do Campos, se o resultado fosse mais de 10%, eu compraria R$ 2 mil de um dos títulos e doaria a bibliotecas daquela cidade. Ele deu risada e mudou de assunto. O desafio ainda está em pé.
Se não há livrarias em Cruzeiro é porque não há demanda para isso; a população ali não se interessa por livros nem pela cultura livreira ao ponto de suscitar um indicativo de que uma livraria vingaria na cidade. A Amazon acelerou esse processo de falência de livrarias no país? Pode ser, mas a incultura nacional também ajudou demais. Pergunte ao seu sobrinho mais querido, à sua irmã mais nova ou ao seu vizinho adolescente quantos livros eles leram nos últimos 23 meses. A crise do livro é antes uma crise educacional do que econômica, é uma crise de desinteresse científico, é um claro desencanto brasileiro com a essência do saber, que é o saber pelo saber, conhecer pelo conhecer, ler para conhecer e ser, um processo que o Ocidente desenvolveu como uma forma de constante formação do caráter e do intelecto do homem.
Um país que lê pouco não pode esperar um resultado menos desastroso que esse no mundo das livrarias físicas; não faz sentido haver muitas livrarias onde há poucos leitores.
Leia também: “Uma chanchada de democracia”, artigo publicado na Edição 209 da Revista Oeste
As universidades não produzem mais grandes profissionais, produzem militantes ignorantes, muitos não sabem escrever o português corretamente. Foi o governo esquerdista que criou esses ignorantes.
A culpa é do e-comerce ,bem mais barato.
Entrega em casa.
Algumas livrarias deveriam ser tombadas, como a da Alameda Santos SP.
Um país com poucos leitores reflete na escolha dos seus governantes.