Não é preciso ser lá muito inteligente para notar que os judeus são um dos grupos mais perseguidos da história humana; dos babilônicos aos terroristas do Hamas existe uma ininterrupta linha de hostilidades e crimes perpetrados contra esse povo. Hoje estamos assistindo a mais um capítulo dessa trama criminosa, bizarra e nojenta, e um dos livros mais interessantes que li sobre esse tema atualmente foi o lançamento da Faro Editorial — sob o selo Avis Rara —, Judeus não contam, de David Baddiel.
Confesso que não sou adepto do dito “lugar de fala” como parâmetro para uma boa crítica, acredito fortemente que um homem pode bem defender as causas das mulheres, um hétero a dos gays, um maromba a dos gordos, com igual propriedade e competência, mas, se existe algo de bom nessa moda identitarista, é poder acessar os depoimentos “de dentro”. Isto é, saber o que tais indivíduos, em suas particularidades e definições, enxergam dos problemas do mundo e de suas tribos segundo suas cosmologias e ideologias. Baddiel é um judeu, ateu e progressista — ele afirma isso constantemente em seu referido livro —, e atualmente encontra-se num sincero desencantamento com o progressismo esquerdista e, sendo sincero, assistindo aos seus últimos vídeos e comentários, não sei mais se ele se denomina progressista. O livro, escrito como um grande ensaio de 112 páginas — mais as 11 de conclusão —, é um protesto ativista da causa judaica, ao mesmo tempo que uma crítica dura ao progressismo esquerdista mundial que a cada dia mais não esconde a sua repulsa a Israel e aos judeus como um todo.
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Sua crítica foca, basicamente, em três tipos de antissemitismo contemporâneo. O primeiro trata-se da “simples” exclusão dos judeus como povo, raça e até grupo que merece nota ou defesa identitária da esquerda; o segundo é o antissemitismo semântico, no léxico propriamente dito, ou seja, no uso de palavras ofensivas aos judeus como um tratamento público, ou até mesmo o termo “judeus” como um adjetivo pejorativo; e o terceiro trata-se do antissemitismo disfarçado de luta social contra o capitalismo, valendo-se do mito — segundo o autor — de que os judeus coordenam a riqueza e pobreza mundial com as suas ganâncias capitalistas.
O livro é relevante e traz exemplos ótimos desse neoantissemitismo progressista, todavia, se mistura a uma quase-histeria do autor que vê, por exemplo, em expressões fonéticas do marxista do Partido Trabalhista, Jeremy Corbyn, um inconteste antissemitismo subconsciente do político; na criação dos vilões do James Bond com narizes aduncos, a expressão indiscutível de um ataque coordenado do subconsciente coletivo aos judeus etc. Ele chega a afirmar que “temos, em nossa mais profunda inconsciência coletiva, a face de Satã — seja lá quem for nosso Satã — como a face de um judeu”. Minha representação do tinhoso nada tem a ver com judeus, tem mais a ver com um bode que cruzou com um bodybuilder peludo, mas deixemos meu capeta para lá.
Em boa parte do livro, Baddiel parece sentir ciúmes de outros grupos minoritários que recebem mais atenção identitária do progressismo do que os judeus, por vezes, parece quase implorar atenção do progressismo à sua causa; sua veia esquerdista o impede de ver com profundidade onde está a raiz do problema identitário. Se, de fato, conseguisse, ele entenderia que não se trata de grupos, de cores de peles ou de orientações sexuais, mas da causa política que eles sustentam por debaixo das saias trans e dos berreiros do movimento negro. Por exemplo, um grupo negro conservador não mereceria a defesa aguerrida dos militantes e da trupe intelectual do mainstream, como o Black Lives Matter. Eles são uma espécie de “negros inferiores”, porque não defendem a causa certa — a causa deles, é óbvio.
David Baddiel parece se voltar contra seu caráter mais íntimo, e constituição étnica mais elementar, o seu ser judeu
O erro fatal de Baddiel, na minha opinião, é fazer parecer que os judeus devem ser defendidos porque são tão minorias quanto os negros e os trans, ao invés de simplesmente focar no absurdo que é desprezar, atacar e maltratar pessoas porque elas são herdeiras de determinado povo. Um pouco antes da metade do livro, o autor se pega numa luta tosca em tentar provar que judeus não são necessariamente brancos como os “brancos não judeus”, e por isso não são privilegiados por suas branquitudes — o que os supremacistas brancos dos EUA também defendem há quase um século e meio. Num trecho ele afirma “Como sabemos, quase qualquer ataque ao statu quo hoje em dia vem com a suposição de que o inimigo é branco, heterossexual e homem, mas o branco é o ponto alto da trilogia. Eu concordo com isso. Concordo que ser branco traz consigo enormes privilégios, muitos dos quais o branco nem sequer tem ideia”. E mais adiante completa: “Os judeus não são brancos. Ou não exatamente. Ou, pelo menos, nem sempre eles se sentem assim. […] Quero dizer que ser branco não tem a ver com a cor de pele, mas com segurança. Isso significa que você está protegido, porque é membro da cultura majoritária”.
Ora, ele comete preconceito contra os brancos com as mesmas vias que os identitários cometem com os judeus. Uma cor de pele, uma herança consanguínea, financeira e/ou geográfica, não deveria condenar alguém a um ostracismo social identitário. Existem muitos brancos ricos, mas também muitos pobres e até miseráveis; existem muitos judeus podres de ricos, mas também podres de pobres. Sem precisar entrar nas estatísticas medidoras de coitados, a regra da benesse social não se faz pela melanina ativa ou herança étnica, mas por inúmeros fatores que vão de um berço mais ou menos ajustado a uma resiliência pessoal que te faz sair cedo da cama todo dia, ao invés de dormir mais alguns minutos.
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Baddiel tem uma causa justa, uma luta real. O antissemitismo esquerdista é crescente e visível a olho nu; hoje não é preciso passar para a segunda página do Google para encontramos exemplos cada vez mais recentes de jornalistas, políticos e intelectuais apoiando um ou mais grupos terroristas contra Israel, muitos deles se valendo de teses claramente antissemitas. Em vários cantos da Europa e do Oriente Médio, símbolos e palavras de ordem antissemitas estão sendo expostos publicamente, de Istambul a Berlim, de Londres aos Estados Unidos. Mas Baddiel não entendeu que o esquerdismo não tem a causa certa para a defesa dos judeus, que, desde Lênin, a revolução está acima de qualquer grupo ou pessoas. Se for preciso passar por cima de judeus para alcançar as vitórias políticas desejadas, eles o farão. Valores e princípios, seriamente tratados, estão longe de ser cláusulas pétreas para o progressismo. Só existirão valores humanos para a esquerda enquanto tais valores ajudarem a empurrar o furgão da revolução adiante.
Para lutar seriamente contra o antissemitismo, é preciso antes acreditar na natureza humana imutável, digna, onde as aparências, etnias e escolhas periféricas de costumes e modus não interfiram nessa dignidade. O identitarismo já nasce da ideia de que tais aparências, etnias e modos, a cor da pele, a região de nascença ou apego cultural, além da postura sexual, são os exclusivos medidores de dignidade individual e de separação social; não há espaço nessa geometria caduca para a defesa irrestrita da dignidade humana de forma integral, onde qualquer indivíduo, não importando mais nada, é digno de respeito e defesa justa.
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O livro de Baddiel, entretanto, é um documento importante, que todos deveriam ler, na minha opinião, pois acrescenta um olhar sincero de espanto quanto à hipocrisia progressista de nosso tempo. E, desculpando a ingenuidade do autor em buscar uma defesa eficaz dos judeus no identitarismo moderno, ele não padece da falta de sinceridade nas denúncias dos esquerdistas. Ele dá nomes aos bois e expõe, como poucos até agora, o antissemitismo velado e, por vezes, descarado, desses supostos defensores das causas minoritárias. Tal edição veio no momento certo, seja para expor a irremediável contradição do progressismo contemporâneo, seja para denunciar a crescente antissemita no discurso mundial. Seja como for, valeu a pena cada linha lida de Judeus não contam.
David Baddiel é o inocente sincero, não um militante histérico. Parece antes um progressista que se deixa iludir por seu caráter demasiadamente humano. O livro transparece uma crise existencial que ele aparenta cruzar atualmente: a causa sócio-política que ele, desde a juventude, defendeu — ele afirma que, quando jovem, participou de encontros do partido comunista britânico.