Vêm aí outras eleições, desta vez precedidas de comícios monumentais, raramente vistos em tempos recentes, mas que se tornaram de repente o principal indício de que o povo vai para a rua e para a praça quando sente que o momento é decisivo.
“A praça é do povo / Como o céu é do condor”, versejou o genial Castro Alves na segunda metade do Século 19, poema em que diz também: “Filhos do solo da Cruz/ Erguei as frontes altivas, / Bebei torrentes de luz…”.
O poeta morreu sem que as bandeiras e preces cívicas que desfraldara em célebres poemas como O Navio Negreiro e Vozes da África tivessem sido atendidas. Mas morreu com o dever cumprido e está é a melhor das mortes.
Tal como o peru, que morre na véspera, o canalha não morre, apenas desaparece no fim de uma existência marcada por prejudicar os outros.
Com o baiano genial deu-se o contrário. Morto aos 24 anos, tornou-se importante e imortal por causa de obra, como sempre tem ocorrido àqueles assim designados. Se obra não têm, podem até ser tratados como tais por conchavos e outras trapaças, ou mesmo simples enganos, mas a posteridade retira a pretendida imortalidade ou importância no dia seguinte ao enterro ou à incineração.
Todavia não existe entidade mais viva nem mais imortal do que o povo tão bem celebrado pelo poeta. Chamado ou não, pois costuma meter o bedelho quando freio nenhum é capaz de segurá-lo, o povo dá as caras ao vivo e em cores no Brasil atual. A soma de todas aquelas pessoas é a cara do povo.
Nos palanques e em outros lugares de mais destaque, que já incluíam o rádio e os jornais e revistas, mas que modernamente trazem sobretudo a imagem da televisão ou como se dela a imagem fosse, como é o caso do streaming, triunfam poucas caras semelhantes às do povo e muitas máscaras. A qual delas a multidão escolherá? Só saberemos depois, na hora certa, aquela que traz a única pesquisa à qual valerá a pena prestar atenção, a das urnas.
A multidão mudou muito no Brasil nesses ajuntamentos recentes e por pauta política. As pessoas ali presentes não são mais contadas aos milhares, como era de praxe, mas aos milhões.
E há um dado a destacar altamente relevante: o povo não tem medo e não vai para esses lugares para brigar. Quem eventualmente pode aproveitar-se das aglomerações para o crime são bandidos de todos os calibres, que vão do antigo batedor de carteiras ao franco-atirador, capaz de alterar o rumo de uma nação ou do próprio mundo, como tem acontecido ao longo da Grande História. O caso emblemático é o do acontecimento que deflagrou a I Guerra Mundial. Quem não se recorda, “google” aí e obtenha o resumo.
Lembremo-nos, ainda que em momentos cívicos tão ternos e bonitos, o que nos ensinou um escritor inglês pela boca do personagem Sherlock Holmes: traições e vinganças também compõem o cenário onde poderá correr o fio vermelho do crime.
Qual é o dever de quem escreve? Ele é também um detetive da história. Tem o compromisso de “desenredá-lo, isolá-lo e expô-lo em toda a sua extensão”.
Quem é autêntico e dá a cara a tapa nos palanques e outros recintos citados e quem está de máscara?
A etimologia nos esclarece algo importante. Máscara e personagem têm significados semelhantes, embora a primeira tenha vindo do árabe más-hara, burla, engano; e a segunda, do grego prósopon, careta, que se tornaria o latim persona, pessoa, que nos deu também personagem.
Entre eles, temos ainda o cara de pau, a quem sempre faltará vergonha. Ele simula ser o que não é. Sente-se obrigado a disfarçar-se em outro. Não pode mostrar a própria cara.
O brasileiro lê pouco, mas gosta muito de ouvir e ver. Assim lembrará, ainda que seja por lembranças do que ouviu ou viu no cinema, na televisão ou no streaming, o caso do homem da máscara de ferro, que habitava os cárceres da França de Luís XIV.
Era um prisioneiro que estava condenado a jamais mostrar o rosto e assim passou à História identificado apenas como o homem da máscara de ferro.
Ele continua à disposição dos leitores de Os Três Mosqueteiros, do escritor francês Alexandre Dumas. Não era ninguém importante, dizem os pesquisadores. Alguma importância deveria ter para ser imposta a máscara a cobrir-lhe o rosto por toda a vida.
Teria havido bom motivo para o prisioneiro usar a máscara. Ele seria irmão gêmeo do rei Luís XIV e, condenado, não poderia mostrar o rosto! Quem formulou a hipótese foi o filósofo Voltaire, que também esteve preso na Bastilha entre 1717 e 1718, e teria ouvido detalhes sobre a identidade do encarcerado.
Este foi, aliás, o argumento do filme em que o homem da máscara de ferro foi revivido no cinema, em 1998, com atuações de Leonardo DiCaprio, Gérard Depardieu e Jeremy Irons, entre outros. O filme foi pouco notado por força do megassucesso de Titanic, que reinou soberano nas bilheterias todo aquele ano.
O povo não usa máscara de ferro. Mas dá tapa com luvas de veludo que podem encobrir mãos de ferro. Isto é, alguns políticos que usam máscaras vão receber safanões que os jogarão longe, muito longe. (fim)
Deonísio da Silva é escritor e professor, seus livros são publicados no Brasil e em Portugal pelo Grupo Editorial Almedina. Veja em www.almedina.com.br e em www.almedina.net
Perfeito.
Que assim seja meu nobre escritor.
Tb percebo máscaras em muitos que fazem tipo para o eleitor.
(E parece que não sou a única). Dia 7 de setembro, os que tomaram as ruas, estavam junto com um que não aprecia máscara alguma.