Foram necessários exatos 30 anos, e a eleição de Javier Milei, um presidente argentino alinhado à luta contra o terror, para que fosse concluída a investigação que aponta o grupo xiita libanês Hezbollah como autor do pior atentado terrorista realizado no Ocidente antes do 11 de Setembro. No dia 18 de julho de 1994, uma van carregada de explosivos destruiu a sede da Asociación Mutual Israelita Argentina (AMIA), em Buenos Aires, matando 85 pessoas e ferindo mais de 300. O ataque foi antecedido por outro realizado em 1992 contra a Embaixada de Israel, que resultou em 22 mortos e 242 feridos.
Forças de segurança latino-americanas estão atuando longe dos olhos do público contra a ameaça da presença crescente desse grupo terrorista no continente. Há pelo menos quatro décadas, a inteligência israelense e a americana denunciam o estabelecimento de uma central operacional do Irã e do Hezbollah na tríplice fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai, facilitada pela forte presença de comunidades xiitas libanesas na região. Segundo o procurador Alberto Nisman, responsável pela investigação do atentado à AMIA, o Hezbollah instalou-se ali em meados de 1980, juntamente com os milhares de libaneses que se assentaram no local para fugir da sangrenta guerra civil no Líbano (1975-1990). O procurador foi assassinado em seu apartamento na capital argentina em 19 de janeiro de 2015, quatro dias depois de acusar o governo Kirchner de acobertar as atividades do Irã no país.
A documentação preparada por Nisman apontou a Ciudad del Este, no Paraguai, como a cidade-base de onde são enviados fundos para operações do grupo no Oriente Médio e em outras regiões. Lavagem de dinheiro, pirataria e tráfico de drogas e de armas são algumas das fontes de receitas do Hezbollah no continente. A embaixadora de Israel na Costa Rica, Mijal Gur Aryeh, declarou recentemente que o grupo também está presente na Nicarágua, Bolívia e Venezuela. “O Hezbollah está atuando em toda a América Latina, e já foram efetuadas prisões no Brasil, Argentina, Uruguai, Peru, Chile e Colômbia. O grupo tem uma estrutura muito bem organizada por aqui”, conta o advogado criminalista brasileiro Daniel Bialski. Ele é membro do Grupo de Combate ao Antissemitismo da Confederação Israelita do Brasil (Conib), organização central da comunidade judaica do país, da qual foi vice-presidente.
Segundo Jorge Lasmar, professor de relações internacionais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, a escolha da América Latina como centro de operações deveu-se, além da presença maciça de libaneses, às limitações impostas por sanções decretadas por diferentes países europeus e pelos Estados Unidos. Ele ressalta, no entanto, que nem todos os membros do Hezbollah fazem parte de seu braço armado e que a comunidade libanesa na região tampouco deve ser confundida com os integrantes do grupo.
O Brasil, desconectado da realidade
Em 2018, a Argentina tornou-se o primeiro país da América Latina a designar o Hezbollah como organização terrorista. Foi seguida pela Colômbia, Guatemala, Honduras e Paraguai — mas não pelo Brasil. “Enquanto a ONU não o declarar como grupo terrorista, o governo brasileiro também não o fará”, afirma Bialski. “No entanto, nossa Polícia Federal o considera e trata como terroristas — o que é uma tremenda contradição”.
Um dos exemplos recentes da atuação da PF é a Operação Trapiche, que em 2022 prendeu dois suspeitos de participar da organização de atos terroristas no Brasil. No Rio de Janeiro, em novembro de 2023, capturou mais um suspeito de integrar o grupo, depois da detenção de outros dois, em São Paulo. Mais recentemente, no dia 8 de agosto, cumpriu um mandado judicial de prisão preventiva e oito de busca e apreensão nas cidades mineiras de Belo Horizonte, Uberlândia e Contagem, e também em Brasília (DF) e São Paulo (SP). Novamente, a motivação eram as suspeitas de planejamento de ataques contra a comunidade judaica do Brasil, a segunda maior da América Latina depois da Argentina.
Esses são apenas alguns dos casos que comprovam a presença e a atuação da milícia islâmica xiita em território nacional.
Solidariedade e financiamento
O Hezbollah utiliza-se da empatia pela causa e dos laços familiares entre os membros da maior comunidade libanesa fora do Líbano, localizada justamente no Brasil. A ligação intercontinental tornou-se ainda mais clara este ano com a morte de comandantes e combatentes do Hezbollah como resultado de ataques israelenses — incluindo a explosão de pagers de seus membros e a eliminação do líder máximo do Hezbollah, Hassan Nasrallah. Foi quando se tornaram corriqueiras as notificações de pesar pela perda de familiares divulgadas por brasileiros e anunciadas em mesquitas, grupos de mídia social etc. O lamento, no entanto, não se restringe ao falecimento de um parente no Líbano: lastima-se, também, a morte de um “soldado da resistência”.
“As autoridades brasileiras precisam abrir os olhos para essa realidade”, alertou Emanuele Ottolenghi, membro sênior da Fundação Defesa das Democracias, um think tank baseado em Washington focado em segurança nacional. “Os militantes da comunidade xiita libanesa local não apenas lamentam a morte de mártires do Hezbollah ou de líderes iranianos: muitos participam ativamente da captação de fundos para o grupo, perpetuando o conflito no Oriente Médio, provendo informação e suporte logístico e apoiando campanhas de desinformação e propaganda no Brasil. Reconhecer o Hezbollah como grupo terrorista é o primeiro passo nessa direção”,
Desde 8 de outubro, um dia depois da invasão do Hamas ao sul de Israel, o Hezbollah realizou, “em solidariedade”, mais de 730 ataques com dezenas de milhares de mísseis contra Israel, causando a destruição de comunidades, cidades e florestas no norte do país e impedindo que cerca de 60 mil moradores retornassem às suas casas após mais de um ano de sua evacuação. O Hezbollah também tem utilizado aviões não tripulados de alta precisão, que conseguem passar despercebidos pelo sistema antiaéreo israelense. Eles provocaram dois incidentes graves nas últimas semanas: um contra a casa do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, e outro que atingiu uma base de treinamento militar e resultou em quatro soldados mortos e 67 feridos.
Atuação na política
O Hezbollah, que em árabe significa “partido de Deus”, é uma organização muito mais poderosa e instrumentalizada do que o Hamas, grupo terrorista islâmico que domina a Faixa de Gaza. Ela é a maior e mais bem armada organização paramilitar do mundo árabe, sendo financiada e treinada pelo Irã e composta de algo entre 30 mil e 50 mil combatentes. Possuía — antes da atual invasão de Israel ao sul do Líbano e a consequente destruição de parte de seu arsenal — aproximadamente 200 mil mísseis apontados para o país vizinho.
A organização foi criada pelo Irã durante um período de grande turbulência no Líbano: a guerra civil deflagrada em 1975 entre os grupos religiosos que compõem o país. As invasões do exército de Israel ao Líbano ocorreram entre 1982 e 2006, na tentativa de eliminar terroristas palestinos infiltrados na região que haviam realizado diversos ataques a civis e soldados na região fronteiriça. A criação do Hezbollah foi a resposta do Irã para, conforme descrito no estatuto da milícia, “garantir o afastamento das influências colonialistas e estrangeiras do Líbano, garantindo assim a sua independência e a sua soberania interna”. Israel também é citado no documento, apontando sua destruição como um dos objetivos fundamentais.
Apelo inócuo aos libaneses
Com o atual enfraquecimento bélico do Hezbollah, o governo dos EUA e o de Israel vêm lançando repetidas súplicas ao povo libanês, estimulando-os a retomar o controle de seu país. Mas, segundo Tony Badran, também um membro sênior da Fundação pela Defesa das Democracias e analista geopolítico especializado no Oriente Médio, esse é um discurso fantasioso. “A capacidade bélica do Hezbollah foi degradada, mas não o seu status político no país”, afirma Badran, nascido e criado no Líbano. “Ainda hoje, ninguém pode fazer nada sem contar com sua aprovação. E, ao contrário do que o Ocidente pensa, a humilhação bélica da milícia fez com que o setor xiita o apoiasse ainda mais, porque não quer perder os privilégios que o grupo lhe garante. Os xiitas continuam sendo o setor mais numeroso e rico do país”.
Netanyahu tomou a iniciativa de gravar recentemente um vídeo, traduzido para o árabe, encorajando o povo libanês a aproveitar a oportunidade para libertar-se do Hezbollah, partindo da premissa de que esse é o desejo da população. Segundo Badran, a reação dos locais foi uniforme: “O que eles entenderam da mensagem é que eles têm duas opções: ou travam uma guerra civil com o Hezbollah ou serão bombardeados”, diz Badran. “Eles nunca farão isso. Não há ninguém que efetivamente contemple fazer essa transição. Os israelenses precisam entender que os cristãos no Líbano não são exatamente seus parceiros”.
Ainda segundo o analista, Israel deve abster-se de ingressar no que ele chama de “melodrama da política libanesa”. Sua missão deve ser puramente militar. “A complicada configuração do poder local só deve ser relevante para os libaneses e seus ‘amigos’ em Washington”, afirma Badran, citando os veementes pedidos dos democratas americanos (e também do governo francês) por um acordo de cessar-fogo com Israel. O sistema político libanês é baseado na divisão de poderes entre seus diferentes grupos étnico-religiosos: a Presidência do país deve ser ocupada por um cristão maronita, o primeiro-ministro é tradicionalmente um muçulmano sunita, e a presidência da Câmara dos Deputados é reservada a um muçulmano xiita. Essa composição hoje é praticamente impossível de ser sustentada, uma vez que há tempos os cristãos deixaram de ser a maioria no país.
Eyal Zisser, vice-reitor e presidente da cadeira de História Contemporânea do Oriente Médio da Universidade de Tel-Aviv, destaca que o Hezbollah responde por uma vasta infraestrutura social no país. “Ele não é apenas uma organização militar e política, e parte da população o vê com bons olhos. Dezenas de milhares de libaneses são empregados do Hezbollah em escolas, hospitais etc.”, explica Zisser. “Além disso, a milícia é muito mais forte e bem equipada do que o exército nacional do Líbano.” Ou seja, não há uma força interna capaz de removê-los.
Para a guerra que trava no momento contra Israel, o Hezbollah foi armado pela Rússia e pelo Irã, que o considera como seu braço armado no Oriente Médio. E criou, com o apoio logístico da Coreia do Norte, um sistema de túneis na fronteira com Israel muito mais sofisticado e complexo do que o Hamas na Faixa de Gaza. O exército de Israel está encontrando centenas de quilômetros de passagens subterrâneas com um arsenal sofisticado. Mapas e documentos comprovam que o plano do Hezbollah era realizar um “novo 7 de outubro” contra Israel, ingressando por terra para ocupar, com a mesma violência do Hamas, a região da Galileia, no norte do país. Outro detalhe surpreendente: armas pertencentes ao exército libanês também estão sendo localizadas pelos soldados israelenses, dando margem à suspeita da atuação conjunta dos dois.
Quanto às perspectivas de cessar-fogo entre Israel e o Líbano, o clima é de incerteza e compasso de espera. Nesta semana, Israel apresentou uma nova exigência que permitiria ao país retirar de lá o seu exército: de que seja imposto um controle realizado por forças internacionais da fronteira entre o Líbano e a Síria, rota tradicional utilizada pelo Irã para armar a milícia libanesa. “Apesar do que muitas vezes prega a mídia internacional, dominar o Líbano não é uma opção planejada por Israel”, opina Zissel. “No máximo, manterá seu exército na fronteira entre os dois países, enquanto aguarda que o Líbano constitua um governo forte com o qual seja possível negociar um cessar-fogo de longo prazo”.
Essa era, aliás, a exigência da Resolução nº 1.701 da Organização das Nações Unidas, criada após o fim da segunda guerra entre os dois países, em 2006: que o sul do Líbano permanecesse desarmado e sem a presença do Hezbollah. Isso nunca aconteceu.
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