(J. R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 3 de abril de 2024)
É raro no Brasil de hoje que o Supremo Tribunal Federal, quando decide fazer alguma coisa, perca a oportunidade de fazer o pior possível. É o que está acontecendo agora, mais uma vez, com o suposto debate sobre a extensão do “foro privilegiado” — a deformidade legal que dá direitos e obrigações desiguais aos cidadãos brasileiros.
O STF, para infortúnio geral, resolveu se meter também nisso, e aí não pode dar outra: o que já é ruim tem tudo para ficar péssimo. Trata-se de um debate suposto porque não existe, no mundo das realidades, debate nenhum. É mais um embuste dos ministros para esconder com latinório e português incompreensível a malícia fundamental daquilo que de fato querem impor ao país: um sistema judicial em que tudo que os ministros quiserem julgar pode ser julgado por eles mesmos, sem os inconvenientes e as incertezas da justiça comum.
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Penal, civil, extra-terrestre — se os ministros mudarem a lei, mais uma vez, em seu próprio benefício, tudo pode ser classificado como “foro especial” e ser entregue ao julgamento do Supremo. O placar da votação já está em 5 a 0 para a ampliação dos poderes do STF.
É disso, e não de outra coisa, que se trata. O Supremo já deu a si próprio o direito de mandar em tudo — da legalização da maconha para “uso recreativo” à proibição de gibis de palavras cruzadas para os presos que o tribunal define como “golpistas”. Agora decidiu mandar em mais do que tudo.
O “foro privilegiado” é um disparate. Por conta dessa invenção, os gatos gordos da República não precisam responder pelo que fazem à Justiça comum — têm direito a serem julgados diretamente no STF, se os seus casos preencherem determinadas condições. É óbvio que eles foram massageando a lei de forma a incluir nisso o máximo possível de gatos gordos. Hoje, acredite se quiser, há 55 mil pessoas com direito a “foro especial” – o que deveria ser uma situação excepcional virou uma feira livre.
É impossível, obviamente, que se possa fazer justiça num sistema assim. Mas o STF acha que ainda não está bom. Quer que o privilégio do foro se estenda a virtualmente qualquer coisa que o privilegiado fizer, a qualquer tempo e em qualquer circunstância.
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Há toda uma encenação, entre os que se consideram “juristas” e coisas parecidas, para fazer de conta que os ministros estão discutindo questões de direito ou de ciência política — ou até, para os mais descontrolados, um “aprimoramento” das instituições. Mas não há um debate jurídico, nem o aprimoramento de coisa nenhuma. O que há na prática é a multiplicação de casos a serem julgados no STF — onde, entre outras coisas extraordinárias, as mulheres dos próprios ministros podem advogar em causas a serem julgadas pelos maridos.
É uma vantagem multiuso. Serve, de um lado, para livrar os magnatas acusados de corrupção de alguma bala perdida na Justiça comum — onde ainda há juízes dispostos a aplicar a lei e condenar quem rouba. De outro lado, serve para garantir que os inimigos políticos não tenham oportunidade de receber um julgamento imparcial nas instâncias inferiores da justiça.
Um dos ministros diz que a mudança pretendida vai aumentar a “segurança jurídica” no Brasil. Segurança do que e de quem? Há apenas seis anos atrás o mesmo STF aprovou um entendimento contrário ao que está sendo proposto agora. Isso é insegurança jurídica direto na veia — a criação de uma jurisprudência em permanente mutação, de acordo com as circunstâncias, os interesses políticos dos ministros e os nomes dos envolvidos. É como o Brasil de hoje está obrigado a viver.